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Kasa Branca

5/5

Kasa Branca

2024

95 minutos

5/5

Diretor: Luciano Vidigal

“Não tem mais jeito, Dé”

Em alguns momentos na vida do cinéfilo, ele vai se deparar com filmes que vão além de sensibilizá-lo pelo despertar do sentimento de empatia, de colocar-se no lugar do outro. Esses filmes vão na contramão. Eles te acessam em sentimentos mais profundos porque, de alguma forma, reflete um pouco da história daquele que o assiste. É uma experiência dolorosa e ao mesmo tempo linda. Como em uma sessão de terapia, ele te atravessa, acessando sentimentos sufocados e te permite revisitar dores e processá-las através da tela. É como se o outro vivesse a sua vida. De alguma forma, aquele filme totalmente alheio a sua existência te conhecesse de uma maneira inexplicável. Kasa Branca me proporcionou essa experiência. Faz muito pouco tempo perdi minha avó materna. Dona Acely também sofria de Alzheimer. E em algumas cenas, sentado na poltrona da sala de cinema, eu revivi instantes que me dilaceraram. Foi intenso, mas me permiti liberar boa parte do choro que permanecia represado.

Kasa Branca nos coloca diante de Dé (Big Jaum), um garoto que tem carinho e cuidado imensos por sua avó, Dona Almerinda (Teca Pereira). Logo nos primeiros instantes Dé recebe a notícia de que é terminal o quadro de Alzheimer de sua avó. Sem conseguir absorver a informação, ele ainda tem que lidar com os custos dos medicamentos, os aluguéis atrasados, o abandono parental… Dé carrega muito nas costas. Por sorte, ele conta com o suporte de seus amigos Talita (Gi Fernandes), Martins (Ramon Francisco) e Adrianim (Diego Francisco).

O trio sempre unido. Imagem: Divulgação

O longa de Luciano Vidigal também traz outros dramas da adolescência que acabam se convergindo em Dé. No canto da tela, a realidade de uma jovem mãe solteira que luta pelo seu sonho de ser cantora; a tristeza da perda do primeiro amor; a explosão de energia que um adolescente traz consigo, tanto pra satisfazer seus desejos, quanto para se revoltar com as injustiças da vida. Cada uma dessas histórias vividas com maestria pelo núcleo jovem. Gi Fernandes consegue afinar vulnerabilidade e força apenas no olhar. Diego Francisco traz uma ternura de menino para seu personagem que transborda sensibilidade. Ramon Francisco é ágil, é engraçado, é tesão, é ânsia, é revolta…é tudo que é superlativo e, também traz um contraponto à Dé.

No epicentro, Big Jaum. Eu já acompanhava seu trabalho na comédia. Mas no drama, Big foi gigante. Me surpreende saber que nunca fizera uma aula de teatro e que toda aquela potência foi desenjaulada durante a preparação de elenco – parabéns Fátima Domingues. Uma centelha pra ser outro mestre da comédia ao drama: Big Otelo! Dé não é um personagem fácil. Ele carrega todo o peso de diversos abandonos nos ombros largos sem reclamar. Com gestos poucos, demonstra a imensidão de seu amor. O turbilhão que existe dentro dele não é observado em sua superfície. Para além da minha experiência pessoal, Big Jaum conseguiu o feito de fazer boa parte da plateia chorar aquilo que seu personagem não conseguia. O grito silencioso e corrida na direção contrária de Dé são suas únicas explosões. Em todo filme, ele só consegue engolir a seco e fazer aquilo que está em seu alcance. Em seu confronto com o pai (Babu Santana), ele não altera o tom de voz. Nem por isso soa menos direto. É uma sequência tão ou mais forte que o de Will Smith com seu genitor em Um Maluco no Pedaço.

Uma cena em especial atravessa a todos na sala de exibição: a despedida. É indescritível a extensão da força daquele momento. A troca de olhar entre Almerinda e Dé não cabe em palavras – escrevo isso novamente chorando apenas por rememorar a cena e de como ela é próxima da minha despedida. Teca é outra atriz fantástica. Sua entrega para viver Dona Almerinda é um fator determinante que amplifica a carga dramática do filme. É imenso o tanto que ela consegue imprimir apenas pelo olhar. Uma interpretação hiper-realista e emocionante. Ambos os intérpretes conseguem elevar o texto do filme em cenas complexas por seu caráter não-verbal e, apenas com a potência de suas atuações.

Kasa Branca traz questões da negritude periférica. Do abandono do estado, do descaso na saúde, gravidez na adolescência, truculência policial, abandono parental e até religiosidade. Mas acerta principalmente em trazer como protagonista um jovem negro e gordo. O lugar desse corpo fora do padrão é em todo lugar. Não apenas em comédias, ou como alívio cômico do protagonista bonitinho. Ou pior ainda, marginalizando-o e reforçando estereótipos problemáticos através de figuras violentas ou preguiçosas. É se permitir reverenciar aquele corpo gordo, negro, que se permite tirar a camisa e se jogar na água. Porque após toda tempestade, vem a calmaria. E a praia, assim como a tela grande, é lugar de todos.

Apesar de todo o choro, o filme nos emociona para além de histórias tristes. É imperativo dizer que Kasa Branca é um filme sobre afeto, uma kalunga audiovisual. Sobre acolher o outro no seu pior momento. A experiência preta vai muito além da desgraça. Ela transborda alegria e pretinhosidade. E, se choramos muito, rimos na mesma proporção quando vemos a zoeira que rola entre o trio de amigos. A amizade entre eles é outro fator que faz com que o espectador se enxergue na tela. Eu também revivi meus momentos com meus amigos de adolescência assistindo ao filme. Chamar de Bebê de Rosemary foi sacanagem – mas quem sou eu pra julgar, né (risos). Essa é uma experiência muito mais próxima da nossa realidade do que a de Goonies, Conta Comigo, Curtindo A Vida Adoidado, Superbad ou qualquer outro filme adolescente da gringolândia. Apesar do drama racial e periférico, é também sobre dar aquela moral pro amigo, até porque tamo junto sempre e, é claro, gastar o amigo com a mãe que…deixa pra lá (risos). É o nosso contexto. Principalmente se tu é carioca subúrbio / favela.

Kasa Branca foi exibido na 26ª edição do Festival Internacional de Cinema do Rio.

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