por Natália Bocanera, crítica correspondente do Cinema com Crítica na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes
A relação existente entre arte e pesadelo parece ter, ao acaso, sido escolhida para dar início à 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes. A atriz homenageada da edição, Bruna Linzmeyer, comparou o ofício da atuação à experiência do pesadelo: o corpo reage biologicamente às ameaças irreais trazidas pelo sono, através de taquicardia, sudorese, sintomas de alerta e fuga, tal como, na arte de atuar, incorporam-se emoções alheias capazes de causar o mesmo efeito. Girassol Vermelho, filme de abertura do festival dirigido por Eder Santos e codirigido por Thiago Villas Boas, é adaptado do livro A Casa do Girassol Vermelho: contos, de Murilo Rubião, e modelado por similar tormento em formas kafkianas. Romeu (Chico Díaz) é um homem oprimido pelos quatro cantos de sua mente, representada por um ambiente teatral e limitado, que após tomar um trem de vagão único, se depara com uma cidade um tanto estranha e começa a fazer questionamentos que não são bem-vindos, dando início ao seu labiríntico calvário.
Girassol Vermelho é um filme de muitos excessos, o que não é, neste caso, necessariamente negativo. A própria ideia kafkiana, o protagonista encurralado em punições e perseguições cuja motivação ele desconhece, ressoa de forma insistente, embora o nome de Franz Kafka jamais seja pronunciado (ainda bem). A caracterização dos personagens é excessivamente declamada, o texto é abundantemente poético, a ambientação é muito teatral, a fotografia brada um jogo de iluminação bastante evidente. Juntos, esses elementos em overdose ditam uma transe opressora de atmosfera onírica que vai justificar, ao menos, algumas, das escolhas formais do filme. No entanto, a forma acurada, consciente de si, esvazia-se na medida em que não consegue transmitir, nas imagens impactantes que produz, quaisquer sensações ou sentimentos que não o do mero deslumbramento. Reconhece-se sua beleza, admira-se seu cuidado, mas inexiste relação de causa e efeito. Nem sua excentricidade alavanca a estranheza necessária ao contexto de sonho e metáforas trabalhado.
A ambientação e a declamação mais teatral são interessantes quando consideramos o terreno onírico por onde o filme caminha. Chico Díaz, um ator formidável, tem e aproveita o enorme espaço que lhe é dado, certamente fundamental para que Eder Santos alcançasse a grandiosidade da composição de imagens que vemos. Daniel de Oliveira confere pertinentemente ares robóticos ao que seria o ditador dessa cidade opressora que pune e aprisiona injustificadamente, um ser não presente fisicamente, mas televisionado em seu discurso. A dama fatal vivida por Luíza Lemmertz, porém, é prejudicada pelo texto redundante, e os demais personagens passam tão rapidamente pela tela que sequer é possível identificá-los.
O espaço, um galpão fabril setorizado que serve de cidade, nos é mostrado exatamente como ele é. Sobem-se fumaças de palco no setor da estação de trem, ambientes são deslocados de um lugar para outro, Romeu transita em uma gaiola carregada por homens militarizados. Eder Santos deixa claro que o pior pesadelo é o claustrofóbico, o que não permite sair do lugar, e é exatamente esse o estado mental do protagonista reproduzido pelo diretor. As incriminações que ele recebe, a culpa que lhe acusam de carregar, não são claras nem para nós nem para o personagem, mas o contexto político ditatorial e militar ali é bastante evidente.
A tortura física e psicológica que Romeu recebe em sonho mostra-se uma fonte abundante para a criatividade do diretor na adaptação do conto. Romeu preso numa caixa de vidro recebendo fortes jatos de água, buscando, sem sucesso, se expressar, além de simbólico, constitui, realmente, uma imagem assustadoramente bela. Esse local onde o regime impede reflexões e questionamentos, onde exige-se o não-pensar, existe no sonho, mas não é tão distante assim. Porém, o impacto da imagem pela imagem, o formalismo que beira o exibicionismo, quando equilibrado pelos excessos que funcionam, parecem falar mais alto em prejuízo do todo da obra. A inserção da sequência bizarra que finaliza o filme, um jantar em que pessoas de sacos plásticos na cabeça sufocam e o protagonista parece ser o único consciente, vai perdendo seu impacto na medida em que torna-se cada vez mais redundante e alongada, e funciona como um bom resumo de toda ópera: um discurso prolixo demais, a forma em detrimento das sensações.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.