Há tempos estou desmotivado a acompanhar os lançamentos da Marvel, seja nos cinemas, seja nos streamings. O que um dia foi um fenômeno da cultura pop, um crossmedia que flertava com a contracultura, se reduziu a um produto genérico onde quantidade atropela qualidade. A fórmula do alívio cômico, que lá atrás funcionou tão bem com o primeiro Guardiões da Galáxia, já estava desgastada em Thor: Ragnarok e, desde então, virou muleta narrativa. O problema? Nem toda história pede um tom irônico, muito menos cômico – e insistir nesse recurso quando o enredo claramente não comporta é simplesmente desrespeitoso com o próprio material.
Além disso, a obrigação de acompanhar todas as produções do MCU se tornou uma missão exaustiva, principalmente quando o esforço não é recompensado com qualidade. As cenas pós-créditos viraram praticamente um esquema de pirâmide emocional, onde a recompensa nunca chega, mas a promessa de algo maior sempre está lá. A Marvel virou uma linha de montagem onde os próprios operários já não aguentam mais: os efeitos especiais caíram para um nível grotesco, o desgaste dos profissionais de pós-produção é evidente e as notícias de demissões por burnout e greves são a cereja podre desse bolo industrial.
A chegada de Sam Wilson (Anthony Mackie) como Capitão América, no entanto, reacendeu um pouco da minha esperança. Afinal, um herói negro vestindo o maior símbolo americano dentro desse universo é, por si só, um evento político. Nos quadrinhos, a passagem do manto para Sam foi um legado natural, enquanto no MCU ele hesitou, questionando se realmente merecia o posto. A série Falcão e o Soldado Invernal ainda nos trouxe John Walker, um Capitão América fabricado pelo governo, instável e problemático, o que já indicava um subtexto interessante.
Mas minha maior expectativa vinha do histórico combativo de Sam nos quadrinhos. Ele enfrentou supremacistas como os Filhos da Serpente e a elite conservadora que rejeitava um Capitão América negro por “manchar o legado de Steve Rogers”. Acreditei que, mesmo sem ser um Malcolm X reencarnado, Sam traria em Capitão América: Admirável Mundo Novo um posicionamento mais contundente sobre questões raciais e sociais. Inocência minha.
Existe uma certa desconfiança racial que paira em Capitão América: Admirável Mundo Novo. Mas ela não recai diretamente sobre Sam Wilson. É na figura de Isaiah Bradley (Carl Lumbry), um supersoldado veterano negro, que o discurso racial é direcionado. O personagem, também presente nos quadrinhos, é uma metáfora para a desconfiança com os heróis de guerra negros e a forma hostil com que eram recebidos pela sociedade branca americana. Em contrapartida, Isaiah não confia no governo americano. E isso se agrava ainda mais com a presidência de Thaddeus “Thunderbolt” Ross (Harrison Ford), que, para quem não se lembra, tem um histórico militarista que o coloca como uma figura central na imposição de controle sobre os heróis. Ross não apenas representa a militarização da política americana, mas também encarna a mentalidade do Reaganismo – uma doutrina de poder excessivo e vigilância governamental que marcou a era de Ronald Reagan.

Nos anos 80, o presidente Reagan instaurou políticas de militarização interna, com um foco na “guerra contra as drogas” e no reforço das forças armadas como pilares da segurança nacional. Ross, com sua postura rígida e autoritária, reflete essa agenda no MCU, pressionando pela subordinação dos super-heróis ao poder estatal, assim como os EUA na época procuravam controlar e disciplinar seus cidadãos e fronteiras. Sua presença como presidente, então, é mais do que uma questão de simples liderança; é um reflexo direto de uma visão política que limita a liberdade e centraliza o poder, tornando o governo uma figura de autoridade totalitária. Ross, portanto, não é apenas um político: ele é um símbolo da militarização, da vigilância e da falta de confiança nas liberdades civis, elementos que permeiam toda a narrativa política do filme.
A história de Capitão América: Admirável Mundo Novo se desenrola após um atentado contra Ross que fere também outras figuras políticas e gera um desgaste diplomático. Isaiah é o principal suspeito, apesar de ter sua mente controlada após ouvir a música Mr. Blue. A resposta do governo, liderado por Thaddeus Ross, é simples: mais controle, mais repressão. Ross, que já tem seu histórico militarista e autoritário, não faz nada além de aplicar uma versão moderna do Reaganismo, reforçando a vigilância e a militarização interna como solução para qualquer ameaça. Sam se vê obrigado a recuperar o material roubado e descobrir o verdadeiro mentor por trás do atentado para poder provar a inocência de seu ídolo veterano que se encontra atrás das grades.
Giancarlo Esposito, como Coral, o Rei da Sociedade da Serpente, é mais um exemplo de ator subaproveitado pelo MCU – ainda não consigo superar Cate Blanchet e Cristian Bale como Hella e Gorr, respectivamente. Seu personagem, que deveria trazer uma presença ameaçadora, acaba se revelando um embuste, um mero peão para o verdadeiro vilão. A atuação de Esposito, embora sólida, ecoa excessivamente seu papel como Gus Fring, com sua retórica calculista e fria. Para completar a fórmula, o personagem parece ter sido projetado para exibir uma desenvoltura física mais ao estilo de John Wick, com cenas de combate e ação que, ao invés de impressionar, soam como uma tentativa de emular algo já feito, sem trazer nada novo ou original.
Claro que não podemos esquecer do adamantium – uma referência direta ao esqueleto de Wolverine e sua relação com os X-Men. O material se torna parte da narrativa quando seu furto, sob a tutela dos EUA, passa a desestabilizar as relações diplomáticas com o Japão. A menção ao adamantium não é apenas um detalhe qualquer: é o anúncio de que a entrada dos X-Men no MCU está prestes a acontecer. Apesar de um macguffin bastante semelhante à maleta de Pulp Fiction, o histórico de outras produções do MCU me faz crer que a presença do metal é só mais um easter-egg, ou outro fragmento do esquema de pirâmide que a Marvel insiste em nos vender.
Capitão América: Admirável Mundo Novo colocou sobre Sam o questionamento de ser digno de vestir o manto após sua recusa ao supersoro. O que ganhou um peso maior após o convite de Ross para liderar uma nova equipe de Vingadores. Sam conta apenas com seu treinamento militar e a tecnologia de seu traje, que o equipe com as características asas, além do traje reforçado com vibranium pelos Wakandianos, um drone auxiliar (Redwing, que nos quadrinhos é um falcão de verdade) e, claro, o escudo do Capitão América. Um êxito do filme é conseguir explorar as limitações humanas do herói, como quando persegue Isaiah confuso após o atentado. Sam é obrigado a descer as escadas enquanto o supersoldado veterano salta do alto da varanda.

A vulnerabilidade do corpo humano diante das missões pode ser sentida com mais intensidade através de Joaquin Torres, que herda o manto do Falcão. Torres, como todo ajudante jovem, inexperiente e emocionado, acaba tomando decisões imprudentes e se expondo a riscos que quase o levam de encontro a morte. A dinâmica entre ele e Sam é a típica de mentor e aprendiz. Nada que não tenha sido visto em outras histórias envolvendo esses arquétipos. Os conflitos geracionais entre os dois até rendem boas piadas, mas que só evidenciam a imaturidade do novato. Me agradam mais as interações de Sam e Isaiah. O respeito que nutre pelo veterano remete a uma questão histórica que rompe com o tecido da ficção. E os momentos de descontração são bem mais interessantes por enaltecer elementos da cultura negra. De novo, Isaiah é quem possui os posicionamentos mais contundentes, pois o novo Capitão América insiste em seguir a cartilha de bom soldado e manter o tom conciliador.
O filme procura fazer um grande mistério a cerca do Hulk Vermelho, o que é bastante questionável já que o personagem foi um dos grandes destaques do marketing do filme, desde pôsteres e trailers até o merchandising. A cena de transformação de Ross no gigante rubi reencena o Médico e o Monstro (Conto gótico britânico que serve de inspiração na concepção do Hulk original). Mas o grande pastiche se faz através de King Kong, quando faz da Casa Branca o seu Empire State. Na verdade, a presença do estourado Hulk Vermelho toda seja um enorme balde de pipoca requentado. Até mesmo o clima de Bela e a Fera é ressuscitado do primeiro Vingadores. Mas se engana quem imagina que a Bela seja novamente representada por uma Viúva Negra – no caso, Ruth Bat-Serath, que agora é chefe de segurança de Ross. Quem fica responsável por acalmar a fera é o próprio Sam…
O quarto filme do Capitão América traz de volta personagens e atores de O Incrível Hulk (aquele em que o cientista é interpretado por Edward Norton). Além da menção ao Abominável, Liv Tyler retorna ao papel de Beth Ross por um breve momento. Mas é a Tim Blake Nelson como Samuel Stern (O Líder), o verdadeiro orquestrador do atentado. Mais um vilão com potencial para ser grandioso devido a sua genialidade, mas ficou reduzido a um fantoche ressentido. Sem contar que sua caracterização está um tanto carnavalesca. É muito desconfortável observar que o filme de 2008 é infinitamente superior no que diz respeito a caracterização dos personagens. Lembro que fiquei impressionado com o Hulk exibindo as fibras musculares marcadas, enquanto o Hulk Vermelho parece um Babaloo gigante com recheio de testosterona.

A conclusão de Capitão América: Admirável Mundo Novo parece dar mais atenção ao arco dramático de Ross do que de Sam. É como se o novo Capitão América fosse um coadjuvante do próprio filme e sua presença seja apenas para auxiliar o Hulk Vermelho em sua jornada de autoconhecimento e redenção. Essa decisão do roteiro coloca o personagem de Mackie quase que no lugar do estereótipo do negro mágico, como o de Mahershalla Ali em Green Book. Até o subtítulo do filme – Admirável Mundo Novo – diz mais sobre a política de controle do General. filme todo adota a mesma postura conciliadora de Sam. Apesar de os quadrinhos sempre terem sido um veículo de discussão de temas políticos parece que, após a compra pela Disney, os personagens da Marvel tivessem se tornado meros bonecos em prateleiras. E tendo em vista a polarização da América – e do mundo – a partir da eleição de Donald Trump, é como se houvesse medo de incomodar o público de qualquer um dos lados. Nem acredito que Ross seja uma propaganda esperançosa do governo Trump, apesar de o presidente fictício entoar frases como “Esse país será nosso”. Talvez o filme que o Sam merecesse fosse dirigido por um Spike Lee com liberdade criativa. Infelizmente o filme é o que é: isento. Apesar de ser mais um produto audiovisual de entretenimento, que até diverte, é um filme morno e esquecível. E a pior coisa que a arte pode ser é apática. Prefiro me convencer que Capitão América: Admirável Mundo Novo serve, ao menos, para nos lembrar que o vermelho não oferece perigo e instabilidade, mas sim o laranja.

JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 3 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico. Em 2025, criou seu perfil, Cria de Locadora, para comentar cinema em diversos formatos.