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Aniquilação

Aniquilação

115 minutos

Ficções-científicas filosóficas e existencialistas não costumam ser digeridas com facilidade, embora haja temperos e preparos que podem transformar narrativas, como por exemplo a de A Chegada, em obras cerebrais e plúrimas sem abdicar do apelo universal. Algo parecido acontece com Aniquilação, adaptação do livro de Jeff VanderMeer (autor de toda uma trilogia que se tornou leitura obrigatória), que, a partir do ponto de vista da protagonista, a bióloga e ex-soldada Lena (Portman), narra os acontecimentos posteriores à queda de um meteoro em uma área inabitada no sul dos Estados Unidos. Ao redor do ponto de colisão, formou-se uma espécie de membrana celular fluorescente, em contínuo crescimento, que provocou mutações expressivas na fauna e flora local e ameaça se expandir até atingir as cidades. É para lá que é enviada Lena, ainda perplexa e sem resposta pelo retorno do marido (Isaac), que julgava estar morto, juntamente com Ventress (Leigh), Thorensen (Rodriguez), Sheppard (Novotny) e Radek (Thompson), todas cientistas também.

Cientistas e mulheres com a urgente missão de salvar o planeta enquanto enfrentam, elas próprias, traumas da vidia pessoal (a perda de um ente querido, o câncer terminal, a traição etc). Mas a questão de gênero é mitigada de tal modo na narrativa que somente os mais misóginos vomitarão suas objeções, um trocado a se pagar diante da ampla e inédita representatividade na ficção-científica proposta por Alex Garland (de Ex_Machina: Instinto Artificial). E o retorno do investimento está na forma de um elenco uniformemente competente, apto a acrescentar camadas a personagens que, a rigor, nada mais são do que as vítimas de uma orquestra já ensaiada. Nada que o filme não revele nos minutos iniciais, em uma estrutura narrativa manjada na forma daquele grande flashback em que Lena relata os eventos a terceiros não familiarizados: nós. Um artifício que também fomenta teorias variadas acerca do enigmático desfecho, ante os questionáveis níveis de manipulatividade e confiabilidade que detém a narradora.

Apesar da estrutura da trama e do fato de a narrativa ser uma espécie de mutação de ficções-científicas anteriores, desde a obra de Andrei Tarkovsky (em particular Solaris Stalker) até os terrores envolvendo criaturas alienígenas (Vampiros de AlmasAlienO Oitavo Passageiro O Enigma do Outro Mundo), o trabalho de Alex Garland reconhece estas inspirações como algo bom e desejável na construção de sua própria identidade, sem que pareçam exclusivamente easter eggs deixados para os experientes identificarem. E o momento em que uma das mais bizarras e fascinantes criaturas produzidas dentro da membrana repete o que fizera o Xenomorfo com Ellen Ripley é preparado com tamanha habilidade que a menção vira só o bônus da sequência, não toda a recompensa. A propósito, mesmo que Garland aprecie a chance de revelar ser uma enciclopédia do gênero (não a toa, seus trabalhos anteriores como roteirista foram Sunshine – Alerta SolarNão me Abandone Jamais e Dredd), sua narrativa está muito mais preocupada com o que tem a falar e como fazê-lo. E é muita coisa!

A decupagem da cena inicial é um ótimo exemplo de como o diretor emprega a linguagem para demonstrar todo seu controle narrativo: a princípio, estamos a sós com Lena (uma célula); no corte seguinte, a câmera revela que dois cientistas estão observando-o; em seguida, este número cresce exponencialmente, de forma idêntica ao que acontece com a mitose apresentada aos alunos da faculdade onde leciona e dentro da membrana para onde é enviada. E se a esta pode ser associada a figura óbvia do tumor metastático, não são tão evidentes os significados que carrega: um ambientalista, em que o desenvolvimento expansionista e desordenado característico da sociedade capitalista contemporânea promove a destruição do meio onde se insere – sim, com instantes de rara beleza, como as árvores cristalizadas em uma praia deserta, intercalados com outros de terror; um intimista, em que o câncer é produto dos mesmos traumas que levaram as cientistas a se candidatarem à missão em um primeiro lugar. Não é em vão que o objetivo é o farol – um símbolo multifacetado por natureza – onde se iniciou a infestação, dentro do qual estão raízes que levam à origem e exigem que Lena enxergue dentro de si pela primeira vez (justificando, assim, a introdução de tantos flashbacks dentro do flashback).

Com um design de produção criativo ainda que aparentemente limitado às (infinitas) possibilidades de combinação de DNA (um crocodilo com dentes de tubarão pode parecer simplório diante de árvores antropomórficas ou da flora que desperta apreço e aflição na mesma medida naqueles mais sensíveis), Aniquilação emprega o próprio título não com o sentido apocalíptico que imaginávamos ter de uma invasão alienígena, e sim com uma ênfase existencial. A de quem enfrentou uma experiência determinante para se transformar em alguém (ou mesmo algo) diferente de quem fora antes, aniquilando-a para dar lugar à mudança. Uma maneira radical, de fato, para expressar a urgência em não negligenciar o eu-interior, cruzando a membrana e enfrentando os perigos que nos separam do farol, a gênese de nosso sofrimento. Um víeis individualista que muito enriquece esta ficção-científica que já nasceu clássica.


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