… porque o empenho do documentarista Asif Kapadia em lançar luz a alguns aspectos da vida de Senna que passaram desapercebidos dão contornos mais reais ao mito. Naturalmente concebido com saudosismo e apelo emocional, Kapadia parte de depoimentos, imagens de arquivos e os bastidores do dia a dia do mundo da Fórmula 1 para construir uma narrativa iniciada no período pós-Kart (“sem a política do esporte”) até a fatídica morte do piloto na curva Tamborello do circuito de San Marino.
Valendo-se de uma descrição que acaba representando com economia a infância e adolescência de Senna (“ele veio de uma família de classe média alta”), Kapadia inicia a narrativa com os depoimentos dos pais de Senna após ter sido escolhido para fazer parte de uma equipe de Fórmula 1 e nos revela a dificuldade do piloto em entender a dimensão política ao esporte.
Desta maneira, Kapadia atravessa a narrativa conseguindo um satisfatório equilíbrio entre o esportista impetuoso e audaz, as vezes até vendendo uma imagem negligente (algo que Alain Prost confessa quando revela que “Airton acha que não pode se matar por acreditar em Deus”), e o seu lado humano através do tempo passado em família, seus relacionamentos e a aproximação a seu lado espiritual com a dedicação fervorosa a Deus.
Conhecido pela ousadia justificada na entrevista a Jack Stewart quando afirma a “obrigação” do piloto em sempre buscar a ultrapassagem, Kapadia retrata os momentos mais heroicos de Senna, como a sua primeira corrida na chuva, em Mônaco, o mais perigoso dos circuitos da Fórmula 1, quando terminou em segundo apenas por causa da interrupção antecipada da prova, ou na sua primeira vitória do grande prêmio do Brasil com defeitos na caixa de câmbio. Ao mesmo tempo, o documentarista não vira o olho para embaraços, como o título de 90, quando em um ato anti-desportivo e desleal, Senna tirou Alain Prost da corrida na primeira curva garantindo antecipadamente o título.
Se engana quem pensa que Senna não era preocupado com a segurança, algo revelado logo após o acidente quase fatal de Martin Donnelly. Motivando-o a levantar a bandeira em uma reunião de pilotos quando arguia por mudanças em determinado traçado do circuito. Aliás, tão bom quanto rever o ídolo, é conhecer elementos dos bastidores da Fórmula 1, como as reuniões internas e a tomada de decisões da FIA, com a presença do seu nefasto presidente Jean-Marie Balestre, arrotando que “a melhor decisao é a minha decisão”.
Outro destaque é a rivalidade com Alain Prost ilustrada com uma dramaticidade quase Shakesperiana começando no fraterno brinde com Ron Denis quando Senna foi contratado pela McLaren às agressões públicas. Conhecido como “Professor”, a narrativa apresenta uma quase inevitabilidade de que alguém frio, metódico e político como Prost se tornar o principal antagonista do emotivo e vibrante Senna.
Abraçando a melancolia na triste trilha sonora de Antônio Pinto, a narrativa abre espaço para detalhes curiosos da vida de Senna, como um jovem Rubens Barichello entrevistado ao seu lado, a sua presença em uma programa da Xuxa e o comentário de Frank Williams quando o compara a uma peça de carro. E até então, Senna era um tributo nostálgico e saudoso. Até os últimos 15 minutos no derradeiro circuito de San Marino quando Kapadia, com uma precisão cirúrgica, tortura o espectador do acidente de Barichello nos treinos à morte de Roland Ratzenberger.
Até a última volta de Senna nos circuitos da vida, quando ouvimos apenas o barulho dos motores na recriação de um dos momentos de maior tensão vistos no Cinema em 2010. E neste momento Senna induz as lágrimas porque o Brasil não perdeu apenas um bom homem, mas alguém que se orgulhava do seu País e buscava modificá-lo mesmo sabendo que as vezes suas ações eram limitadas. Um alguém não menos que um herói.
Avaliação: 5 estrelas em 5.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “Crítica | Senna”
Senna, é quase um mito brasileiro. Pena que, mais uma vez, não valorizamos o heroísmo do piloto, temos como maior prova disso o fato do filme ser produzido por ingleses.