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O Pastor e o Guerrilheiro

O Pastor e o Guerrilheiro

115 minutos

A ditadura militar é discutida ao lado do evangelismo e da virada do milênio

A ditadura militar brasileira é um evento trágico histórico, que, como tal, é o centro a partir de onde múltiplas vidas e famílias foram modificadas de forma irremediável: perseguidas, torturadas, exiladas, mortas, somente por agir ou pensar de uma forma diferente daquela de quem estava ilegitimamente no poder. É natural que a ditadura, como são as segundas guerras no cinema internacional, tenha papel de destaque na arte brasileira, por ainda ser uma ferida aberta, cujos 37 anos não foram aptos para cicatrizar. Até então estávamos em processo de cura e terapia, interrompidas com a eleição de Bolsonaro e o aparecimento de vozes hostis e desumanas, antes enjauladas dentro do esgoto onde deveriam ter ficado. E O Pastor e o Guerrilheiro, inspirado em fatos, fala sobre esse tempo que separa a violência estatal da demorada e traumática cura. 

O roteiro de Josefina Trotta subdivide a atenção da narrativa em três núcleos: por volta de 1973, Miguel Souza (Massaro) adota a identidade do norteriograndense João e se junta a um grupo revolucionário no interior da selva do Araguaia; em 1999, Zaqueu (Mello), um pastor atento à fé e não ao dinheiro, lida com a mudança permanente da mentalidade da igreja evangélica na figura dos filhos e é visitado por um homem que se recorda dele preso durante a ditadura; e, na mesma época, a estudante e ativista Juliana (Dalavia) descobre ser a filha do coronel Cruz (Gelli), um torturador responsável pela violência em Goiás, e que deixou para ela uma herança. 

O diretor José Eduardo Belmonte mencionou, na coletiva de imprensa, só haver refletido a respeito de como o tempo é trabalhado após ter assistido ao filme. No passado, por não existir o presente a personagens presos, física ou espiritualmente, àquela situação, pode-se apenas sonhar com o futuro e marcar encontros décadas por vir. No presente, o passado retorna para assombrar os personagens, que ainda receiam a chegada do bug do milênio e não encaram com otimismo as mudanças prometidas. A ditadura é, então, um evento social e histórico que perturba definitivamente a temporalidade, como um buraco negro distorce e absorve a luz ao seu redor. A ditadura revela ser o eterno presente ao qual os personagens estão presos, até serem capazes de enfrentar a memória traumática. 

Mesmo não tendo vivido a ditadura, a combativa Juliana é exemplo disso. Quando não está lutando pela aprovação de cotas na Universidade de Brasília, ela deve decidir se deve, ou não, aceitar a herança deixada pelo Coronel, pois pode ser instrumental para auxiliá-la no tratamento do câncer da avó (Kis). Enquanto toma sua decisão, Juliana tenta descobrir qual o paradeiro de Miguel Souza, ex-aluno da mesma UnB e cujo livro a respeito da guerrilha do Araguaia terminou de ler. A busca dela movimenta a trama, quando os eventos ocorridos no passado tomam vida porque dolorosos demais para permanecerem presos em palavras: a captura e tortura de Miguel, após perambular adoecido com malária pela floresta, a morte da companheira Marta (Hartmann, que, mesmo com pouco tempo de trama, energiza essa história), a esperença de reencontrar o companheiro de cela, Zaqueu. 

Afora evitar retratar, de modo estereotipado, o religioso evangélico, José Eduardo Belmonte ainda parece criar uma relação entre o evangelismo neopentecostal (da Igreja Universal a título de exemplo) e a ditadura. Se esta é imposta pelos Estados Unidos aos países do cone sul durante a época da guerra fria, o modo de pensar a religião protestante é importado dos televangelistas norte-americanos que colocavam o dinheiro à frente da fé, no Evangelho da Prosperidade, para criação de templos e existências nababescas. Zaqueu se posiciona contrariamente: o dinheiro deve ser apenas o necessário à existência digna, de tal modo que os valores defendidos relacionam-se com o modo de pensar dos guerrilheiros, como Miguel / João. 

As linhas temporais e os núcleos narrativos dissolvem-se uns nos outros, em razão do tema e dos dramas comuns com a presença da ditadura, mesmo 14 anos depois de seu término (digo em 1999), conferindo coesão e uniformidade à trama. No elenco, Johnny Massaro tem uma atuação física calcada na resiliência; já César Mello, uma atuação intelectual baseada no debate sereno de ideias, com quem pensa diferentemente, por crer noutro Deus (o deus da revolução), ou por ser de outra geração, caso de seu filho mais velho Jeremias (Costa). Julia Dalavia confere dinamismo e intensidade à busca empreendida, ainda que a decisão acerca da renúncia da herança pareça mais uma birra de uma jovem de classe média e não um dilema existencial complexo (não há como decidir contra a avó, não é mesmo?). 

Talvez por isso, “A Estudante” não figure no título da narrativa ou talvez seja porque existe como o conectivo “E” que reúne O Pastor e o Guerrilheiro, passado e presente em uma geração que não viveu a ditadura militar, mas compreende a importância dela na formação da sociedade de hoje e nas cicatrizes que muitas pessoas e famílias ainda conservam em si. 

Crítica publicada durante a cobertura do 50º Festival de Cinema de Gramado

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