Fiel ao livro de Stieg Larsson, o roteirista Steven Zaillian realizou pequenas concessões no material original, reduzindo a super-exposição da vida sexual do jornalista e editor da revista Millenium Mikael Blomkvist (Craig) e afastando o cotidiano da redação da publicação. Essas modificações permitiram ao roteiro concentrar-se na história de Mikael, que depois de ver sua credibilidade (e bolso) atingidos na acusação de calúnia movido pelo bilionário Wennerstrom (Friberg), é “convidado” pelo magnata Henrik Vanger (Plummer) a investigar o misterioso desaparecimento de sua sobrinha Harriet ocorrido há mais de 40 anos na isolada localidade de Hedestad. Entretanto, Mikael envolve-se em uma trama maior do que imaginara a princípio, e com a ajuda da – permitam-me momentaneamente o reducionismo – hacker Lisbeth Salander (Mara), investiga um perigoso assassino de mulheres.
De estatura diminuída e composição corporal frágil, a qual ela culpa o metabolismo, ostentando piercings e tatuagens e trajando roupas de couro ameaçadoras (um mecanismo de proteção), Lisbeth ergue agressivamente a bandeira do feminismo em um mundo dominado por homens poderosos e corruptos que não hesitam em usar a força física para dominar e abusar das mulheres ao seu redor. Ela, porém, não é uma heroína, é uma pária da sociedade, uma sociopata calculista e violenta, fruto de incontáveis abusos sofridos que a permitiram enxergar o mundo pelo que ele realmente é: um conjunto de ínfimas regras de convivência e etiqueta, as quais ela despreza, movido pela simplicidade da representação computacional binária. Os homens são ou não são, fazem ou não fazem, não há o meio-termo, o que explica sua preferência pelos computadores – eles não argumentam, obedecem a comandos sem pestanejar, não abusam ou maltratam – embora não hesite satisfazer suas urgências sexuais humanas. Interpretada por Rooney Mara (merecidamente indicada ao Oscar) com afinco e comprometimento, sua Lisbeth é uma mulher hostil em estado de alerta pronta para revidar e reagir. Debaixo do visual hardcore, de um olhar quase sem vida e das demonstrações explícitas de raiva e violência (os gritos guturais revelam-se perturbadores), Mara encontra uma bem-vinda insegurança nas ações de Lisbeth no carinhoso afeto dirigido a seu ex-tutor, e reconhecer ser problemática diz muito sobre o seu complexo caráter.
Visualmente descrita de maneira brilhante nos créditos iniciais (um pesadelo psicodélico hardcore na revisita de Fincher aos videoclipes que o tornaram famoso), Lisbeth, apesar da estatura, não é indefesa e a reação dela às ações de um ladrão no metrô ilustram isso. Capaz de sacrificar-se, como na resignada visita ao novo tutor, e dotada de uma memória fotográfica impressionante, Lisbeth também é uma investigadora tão boa quanto Mikael, interpretado com segurança e frieza por Daniel Craig. Nesse sentido, a dinâmica e entrosamento da dupla permitem que, durante a primeira metade da narrativa, os montadores Kirk Baxter e Angus Wall antevejam a indissociabilidade de Mikael e Lisbeth no curso da investigação a partir da montagem entrecortada e paralela das suas ações.
Elaborando rimas que aproximam Mikael e Lisbeth, notadamente na maneira com que cada um utiliza o computador, David Fincher novamente mostra-se interessado nos pequenos detalhes que envolvem uma investigação e nenhuma pista é desprezada ou descoberta sem relativo emprego de esforço. Sem dosar nas cenas mais gráficas, há pelo menos duas intensas e repulsivas e noutro momento dentes voam nitidamente após o golpe desferido por um taco de golf, Fincher compreende seus personagens e a apresentação de Lisbeth é feita de forma cuidadosa, mantendo-a no ponto mais afastado da mesa de reuniões e investindo em um close particularmente revelador no momento catártico da cena. Por outro lado, Fincher é menos feliz no desnecessário epílogo, mais inchado do que o da versão norte-americana, o qual busca amarrar algumas pontas soltas e “vingar” Mikael.
Enquanto isso, a fotografia de Jeff Cronenweth acerta no sépia ao retratar o conflituoso passado dos Vanger, e no opressivo frio da Suécia invernal, antecipado no plano-detalhe de um termômetro. Transformando-se em um verdadeiro personagem, o recôndito dos Vanger, absorto nas florestas e na neve, cercado pelo oceano movido por fracas correntes marítimas e ligado ao continente por uma imponente ponte, revela no distanciamento dos membros da família a insensibilidade habitualmente esperada do lar de uma tragédia. Dessa forma, a direção de arte de Donald Graham Burt acerta na individualização dos lares de cada um dos membros, especialmente no asséptico e moderno de Martin (Skarsgard), ou no nostálgico e grandioso interior da mansão de Henrik. Também não escapa a mesa do escritório de Bjurman, e um singelo porta-retrato de sua família ou a caneca onde se lê “Pappa”.
Com a incômoda trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Rosa (colaboradores de Fincher em A Rede Social), os intransigentes sons despertam a memória de traumas, dores e o furor interno de Lisbeth, brevemente silenciados quando reencontramos Mikael, que politicamente convencional, nada mais é do que o grande figurante do show solo dessa atuação monstro de Rooney Mara que, nos segundos finais, afasta a intensidade em um breve e fugidio frustrante olhar.
P.S.: o final escrito por Steven Zaillian é sensivelmente diferente do original e dos livros, porém mais coerente e inteligente.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
12 comentários em “Millenium – Os Homens que não Amavam as Mulheres”
Parece que é consenso que "Os Homens que Não Amavam as Mulheres" se trata de uma produção que vale a pena ser conferida. Anseio por vê-lo logo.
Vi sábado passado, Márcio. Sou fã de Fincher, mas acho que sua trajetória vem decaindo a cada ano. Se lembrarmos SEVEN ou CLUBE DA LUTA veremos como esse filme é banal. Até mesmo a Rooney Mara não me empolgou. Seu personagem é apenas um show de maquiagem/figurino.
Abraços,
O Falcão Maltês
Sou um dos mais indicados para falar dela. Li os três livros, vi os três filmes suecos e essa (continuou) me impressionando positivamente.
Esse é um detalhe interessante e concordo que ele não é mais o Fincher de Seven e Clube da Luta. Antes ele era um diretor de pirotecnias visuais e aquela história de "visceral" encaixava bem para descrevê-lo. Hoje em dia, seu estilo de filmagem é mais frio (desde Zodíaco), calculista, planejado. Eu gosto das duas fases, vou ser sincero, mas não deixa de ser um ponto de vista novo. Abraços.
Sem dúvida, um dos melhores do ano, para mim merecia indicações pra Filme e direção no Oscar 2012. Um absurdo a ausência. Sabemos que é um trabalho muito bem delineado por Fincher e só tenho a te elogiar pelo texto primoroso, talvez porque eu realmente gostei dessa adaptação, assim como você li os livros e fiquei insatisfeito com a versão sueca. Abração!
Tem toda razão. Um dos grandes filmes lançados nos EUA no ano passado e deveria, ao menos, figurar entre os 10 melhores da lista do Oscar (não Cavalo de Guerra, argh).
Parece que Denzel Washington vai fazer o remake de "O Segredo de Seus Olhos", será que vai ser melhor que o original. Eu não vou assistir.
O filme original é melhor. A versão de Hollywood é uma tentativa frustrada de transformar um prato requintado em um hambúrguer. Nem o ketchup ajudou no paladar. De qualquer forma, comparativamente aos filmes do gênero "povão", é ótimo.
Filme bom, mas nada de impressionante. E poderia ter menor duração. E como o nível do Oscar não é lá muito elevado, esse filme deve ter extrapolado a "inteligência" dos críticos americanos, para não ser indicado.
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Abraço!
Boa critica, comentei o filme nesse link
http://b1brasil.blogspot.com.br/2012/02/os-homens-que-nao-amavam-as-mulheres.html
JOPZ
Eu amei este filme!!! Eu comecei a vê-lo no pc numa copia ruim que baixei e conforme o filme foi acontecendo eu pensei: "esse filme merece ser visto no cinema!!!", duas horas depois la estava eu na fila do cinema pra terminar de ver o filme..rs. Eu sou fã do Fincher e acho que ele melhora a cada filme que faz. Espero muito que os outros filmes sejam feitos por ele também. A Rooney Mara eu nem sabia que existia, eu até cheguei a ver A Hora do Pesadelo, mas foi tão pesadelo pra mim que eu procurei esquecer imediatamente após ver. Fiquei encantado com o trabalho dela neste filme.