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50 Anos | Do Japão à Grécia em 1962

Tendo revisitado Sanjuro de Akira Kurosawa, também merecem destaque dois outros filmes da terra do sol nascente que completam meio século de vida: uma das obras-primas de Masaki Kobayashi, Harakiri, que ganhou uma refilmagem recente pelas mãos de Takeshi Miiki ainda inédita no Brasil, e o último filme do célebre Yasujirô Ozu, A Rotina tem seu Encanto. Pegando um voo para o velho continente, também comento o principal filme grego de 1962, a adaptação da tragédia de Electra, dirigida por Michael Cacoyannis.

Harakiri

Até onde vai a honra, é a pergunta de Masaki Kobayashi nesta discussão sobre o bushido. Adaptado do livro de Yasuhiko Takiguchi, o roteiro de Shinobu Hashimoto ambientado durante o período feudal aponta para o efeito adverso da paz entre os clãs: muitos samurais, antes a disposição dos seus mestres, agora estão desempregados sem encontrar uso para suas habilidades. Hanshiro Tsugumo é um deles, e buscando dar um fim digno à sua vida na prática do harakiri (também conhecido por seppuku) ele bate às portas do clã Iyi onde, há pouco tempo, o seu afilhado Motome Chijiiwa morreu de forma desumana praticando o mesmo ritual. Antes, porém, de atravessar a espada por sua barriga, Hanshiro começa a contar aos membros do clã o que o levou a chegar àquele momento, desafiando a autoridade do líder Kageyu Saito.

Mais interessado em vingança, apesar de não descartar cumprir o harakiri, Hanshiro é um samurai tão hábil na espada quanto é inteligente, provando ainda ser bondoso e gentil nas idas e vindas proporcionadas pelos flashbacks. Seu antagonista, Kageyu, também é um homem sensato e preocupado com o bem-estar do seu clã abrindo espaço para um embate ideológico inteligentemente retratado por Masaki Kobayashi, no qual somente as vezes os personagens dividem o mesmo quadro. Assim, mesmo que Hanshiro pareça diminuído no páteo cercado por outros samurais, os closes utilizados, o enquadramento de baixo para cima e o timbre de sua voz permitem que ele compense a superioridade de Kageyu no palanque e a sua aparente inatingibilidade.

Contando com duas ótimas atuações — tão boas, inclusive, que resultaram em discussões nos bastidores — e o mais intenso e traumático seppuku já visto no cinema, envolvendo uma espada de bambu e planos inclinados e closes que ressaltam graficamente a dor da vítima, Harakiri revela como, mesmo no rígido código do bushido, a honra, assim como vários valores, é um parâmetro maleável, superficial e corrompível.

A Rotina tem seu Encanto

Último filme do renomado cineasta Yasujirô Ozu e também uma de suas mais sentimentais e melancólicas poesias sobre o amor paterno e o envelhecimento, A Rotina tem seu Encanto tem como protagonista Shuhei, um viúvo, a poucos anos de entrar na terceira idade, pai de três filhos: Koichi, primogênito, já casado e encarando problemas financeiros; o caçula Akiko, ainda na fase do menor esforço possível da adolescência; e a bela Michiko que, tendo atingido a idade adequada para se casar, ainda habita com o pai, realizando os afazeres domésticos. Para Shuhei, a vida tem sido relativamente cômoda, entre o trabalho burocrático na indústria e noitadas com os amigos Kuwei e Horie regadas a saquê e cerveja, a ponto de o cegar que, no futuro, a sua inércia em encontrar um marido para sua filha acarretará na infelicidade da moça. Estímulos não lhe faltam: uma secretaria do escritório com a mesma idade de sua filha vai se casar (ele, inclusive, inconsciente e ironicamente a congratula); a filha de Sakuma, um antigo professor, deixa transparecer o desgosto de ser solteira; e Kuwei insiste em ter encontrado um bom partido para Michiko.

Similar ao seu Pai e Filha (embora não seja uma refilmagem assumida), Ozu se especializou no retrato da classe média japonesa após a segunda guerra mundial, usando a família para discutir temas mais amplos, através de características discretas como o resoluto conformismo de Michiko ou a resignação de Shuhei. Este seu protecionismo, que se confunde com o medo da solidão, numa manifestação da síndrome do ninho vazio, é destacado também na trilha sonora de Kojun Saitô cujos acordes de piano recordam canções infantis de ninar, e não seriam os filhos eternas crianças aos olhos dos pais?

Com um estilo rigorosamente doce e tranquilo, Ozu descarta qualquer movimento de câmera e mantém a câmera estática e a certa distância de seus personagens, deixando o convívio e a melancólica expectativa de vida daquela sociedade nos conquistarem gradualmente. O ótimo elenco ainda comunga a bondade e cordialidade tão carentes na produção contemporânea, o que culmina na figura de Shuhei, interpretado com discrição por Chishû Ryû. Dividindo-se entre o pai de família, o trabalhador e o amigo, o ator não esconde a tristeza do peso que já viveu, embora ostente um sorriso convincente e uma aparente felicidade. Embriagar-se, portanto, é a única forma de escapismo encontra e, nesse sentido, o estilo de Yasujirô Ozu é adequado em sempre manter o quadro apertado, prendendo os personagens na limitação da rotina, e a escassez de tomadas externas somente sedimenta esta decisão.

Sentimental, mas nunca piegas, Ozu cria uma obra universal sobre paternidade e envelhecimento com um desfecho reflexivo similar à própria transitoriedade da vida. Sem dúvida, uma bela obra de arte de despedida de um diretor admirável.

Electra

Falecido há pouco mais de 1 ano, Michael Cacoyannis é um dos mais importantes cineastas da história da Grécia e mundialmente lembrado por sua maior obra-prima, Zorba – O Grego, pelo qual foi indicado ao Oscar de melhor filme, diretor e roteiro adaptado. Antes, porém, de atingir um enorme prestígio internacional, Cacoyannis adaptou a popular tragédia de Eurípedes, Electra, um esforço irregular, mas que ainda lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. O roteiro inicia com a chegada do rei Agamenon, vitorioso da guerra de – e recomendo a leitura da Odisseia e Ilíada, ambas de Homero, para compreender melhor os eventos transcorridos até então -, apenas para ser morto covardemente por Egisto em conluio com a rainha Clitemnestra. Depois do assassinato, seus filhos, Electra e Orestes, trilham destinos distintos: o garoto foge para evitar a fúria do padrasto que o mataria; a jovem é trancada no castelo e tratada como uma escrava antes de ser dada em casamento a um pobre camponês. Clamando aos deuses por justiça, Electra reencontra seu irmão perdido Orestes, agora um rapaz, e o usa como instrumento para concretizar sua vingança contra Egisto e a sua mãe.

Proferindo o seu primeiro diálogo com apenas 5 minutos de narrativa, e não é surpresa que este seja justamente a ordem de Clitemnestra a Egisto, “Mate-o”, Michael Cacoyannis imprime um tom fúnebre à narrativa, com economia nos diálogos e um luto estampado nas vestes das mulheres ao lado de Electra. Ela, interpretada com intensidade por Irene Papas, é uma complexa mistura de revolta, sacrifício e luto, refém do amor incondicional pelo pai e da amargura de viver como uma mulher humilde, mesmo exaltando a generosidade e o respeito do seu marido (“ele não me tocou”). O êxito da atriz, no entanto, é isolado: Giannis Fertis não consegue transmitir as particularidades de Orestes; Fivos Razi é um Egisto pouco detestável (digno mais de pena); e Aleka Katselli não tem espaço para desenvolver Clitemnestra, fazendo com que sua confissão no final soe deslocada, mesmo porque Cacoyannis havia ignorado no roteiro, até então, a história de Ifigênia que seria o motivo da mágoa da rainha — curiosamente, o diretor adaptaria em 1977 esta história que também seria indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

Seguindo o estilo Cacoyannis de direção, a narrativa é desapegada de formalismos, investe na espontaneidade, além de alternar planos abertos descrevendo o cotidiano de Electra e as demais mulheres (as canções carregam o peso da dor e vão completamente de encontro às mais alegres de Zorba) e planos fechados que evocam os sentimentos conturbados dos personagens. O resultado é um filme inconstante oscilando entre o ímpeto vingativo (e o consequente arrependimento) e um desleixo prejudicial tanto no ritmo, quanto no conteúdo.

Esta crítica integra o especial do Cinema com Crítica que celebra o aniversário de clássicos que completaram 50 anos de idade. Na próxima edição, crítica de O Sol é para Todos de Robert Mulligan.

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