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Crítica | Cinquenta Tons mais Escuros

Cinquenta Tons mais Escuros

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A continuação de Cinquenta Tons de Cinza, intitulada Cinquenta Tons mais Escuros – o único acerto da produção, como você confirmará a seguir – finalmente revela o que todos queriam saber sobre Christian Grey: que ele é um exímio ginasta. Brincadeiras a parte, não somente moralmente repugnante,  a sequência disputa com Resident Evil 6 o posto de pior filme do ano pela mera forma com que ambas espancam e destratam a arte cinematográfica, e duvido que exista neste ano, para cinéfilos, maior tortura do que ser obrigado a assisti-los um depois do outro. Excepcionalmente, fracionei a crítica: na primeira parte, “tento” desvincilhar-me do sexismo / misoginia que faz Passageiros ser feminista por comparação e analisar como romance erótico que pretende ser; no segundo, comento sobre a mensagem canalha e nojenta mascarada a olhos nus, ocasião em que revelarei spoilers.

Parte 1 (ou o que são esses diálogos?)

Separada de Christian (Dornan, tão expressivo quanto uma boneca inflável), Anastasia (Johnson) está empregada em uma editora de livros como secretaria de Jack Hyde (Johnson), porém não consegue superar a ausência do quarto vermelho, o que a narrativa dirigida por James Foley (cujo último trabalho foi o fraco A Estranha Perfeita, de 2007) enfatiza logo nos créditos iniciais enquadrando-a sozinha no banco da praça ao som de The Scientist, de Coldplay, cujo uso aqui empalidece em comparação com o ótimo Paixão à Flor da Pele. Depois de ter seus retratos expostos por seu amigo Jose (Rasuk) em uma galeria de arte, Anastasia reencontra Grey e decide reatar o romance desde que “Sem regras, sem punições e sem segredos”, apesar de não demorar para que este responda, rispidamente, “Eu não quero falar sobre isto” quando questionado sobre seu passado.

Sem o estabelecimento de um conflito central, afinal, o ciúme envolvendo Jack, o aparecimento da antiga “submissa” Leila (Heathcote) ou até o passado de Grey são meros obstáculos que podem ser resolvidos em minutos pelo jovem bilionário, o texto do estreante Niall Leonard limita-se a repetir o seguinte algoritmo: Ana e Grey reatam; transam; ela descobre algo sobre ele; ele se declara; comece tudo novamente. E isto sem mencionar as cenas de sexo tão frígidas quanto o cinema erótico da madrugada (em certo instante, Ana seduz Grey com um “Estou vestida demais”, e aposto que, se estiverem vivos, os autores de Emanuelle enrubesceram); aliás, todas as transas são acompanhadas de uma trilha sonora “sensual” que serve somente para denunciar quão caretas e insípidas elas são, o que faz sentido vindo de um casal que não tem a menor química, apesar de tentarem se enganar do contrário.

Contudo, o que esperar de um roteiro cujo ápice do romantismo é declarado com um “Você me ensinou a trepar; ela me ensinou a amar”? A propósito, se eu fosse colecionar os péssimos diálogos do filme, escreveria um livro (oops, E. L. James já o fez), repleto de atrocidades como: “Eu só quero me aproximar de você”; “Ela de fato lê”, o elogio de Jack a Anastasia, que demonstra de forma inconfundível que o cara era um péssimo editor, pois mantinha empregados que não faziam o que era esperado deles; e todos aqueles que denunciam o sexismo de Grey, mas que guardei para a próxima parte. Porém o que me impressiona pra valer é Anastasia emendar diálogos simplórios e juvenis mesmo que, por causa do ofício, ler dezenas de livros e isto deveria, em tese, aprimorar seu vocabulário e a construção de frases. Se bem que, considerando a reunião de trabalho de que participa e a sugestão “brilhante” que impressiona todos os presentes, é fácil enxergar de maneira indelével que a escritora e/ou o roteirista não entendem bulhufas do mercado literário.

De forma idêntica, a direção de James Foley namora o óbvio para terminar no desastre: enquanto o pedido no restaurante é utilizado como forma superficial de simbolizar a nova Anastasia, que agora não come mais o mesmo prato de seu mestr… digo, Grey, as olheiras e a gaze nos pulsos de Leila são elementos previsíveis para ilustrar o estado de espírito da personagem. E o que dizer da transformação de Jack? A priori, uma espécie de Jacob (o de Crepúsculo), instrumental para apimentar o romance central e sugerir um triângulo amoroso, não demora para que o personagem revela suas reais intenções e isto é traduzido na forma com que é apresentado em cena: na sua primeira aparição, ele está com lápis na orelha (deixa de que é inteligente) e um fio de cabelo roçando na testa (de charme); ao revelar o desejo por Anastasia, o cabelo está bagunçado, para enfim mostrar-se totalmente desgranhado. E se pensarmos bem, Jack é apenas um artifício de E. L. James necessário para que Grey pareça menos canalha por comparação.

Uma canalhice que beira a doença, a considerar a razão por que se envolve com mulheres esteticamente parecidas, no que beira a psicopatia de Norman Bates (de Psicose). E a tentativa de enxertar (o termo crítico é esse mesmo) um acidente para catapultar o clímax da narrativa é a prova de desespero de um filme que não entende o mínimo sobre construção de estrutura, de bons diálogos, de personagens interessantes e da química essencial para que nos interessemos por um romance.

Mas nem mesmo assim Cinquenta Tons mais Escuros, sabe por quê? É abjeto e esta não é mais a hora de ser engraçadinho.

Parte 2 (ou mulheres não são objetos!)

Em certo instante da narrativa, Anastasia afirma que lê Jane Austen e as irmãs Brontë, expoentes do feminismo literário, e a ironia que há é trágica e uma verdadeira chacota de E. L. James, que desvirtua as romancistas para enganar o espectador de que estão diante de uma mulher além do seu tempo, quando apenas é alguém ingênua o bastante para não enxergar a verdade: é objeto ou propriedade de moleque mimado escorado na infância trágica tal como alegam ser os atiradores responsáveis por tiroteios em massa. E se você não tem pena desses, por que sentir compaixão por Grey?

Sim, Grey teve uma infância trágica e foi abusado sexualmente por uma mulher mais velha, porém isto não é (nem nunca foi) desculpa para enxergar mulheres como coisas, em diálogos como: “Quero você de volta. Vamos renegociar os termos” ou “Ele quer o que é meu”, ou ações ao tentar comprar (não há termo mais apropriado) Anastasia com presentes caros (iPhone, MacBook, carro, cheque de milhares de dólares) ou inibi-la de ascender na carreira pelos próprios esforços, fazendo-a, inclusive, abdicar da própria vontade diversas vezes, engajando-se em um diálogo que não dura mais de 5 frases (ao menos é melhor do que “A resposta é não” ou “Ao menos uma vez, obedeça”). E, bem, estamos falando de um cara que contrata detetives particulares para investigar se o sua futura esposa será uma boa submissa.

E se Cinquenta Tons mais Escuros, como o anterior, era contado do ponto de vista de Anastasia, a protagonista, não existe desculpa alguma para que ela reate com Grey depois de ver o que seu comportamento doentio e sádico foi capaz de fazer com uma garota inocente. Será que, enquanto Grey ajoelhava-se pela segunda vez para pedi-la em casamento, diante de uma plateia tão artificial quanto os fogos disparados neste momento, Anastasia pensou naquela garota submissa, humilhada e mentalmente destruída porque um bilionário, em vez de procurar terapia, transformou traumas do passado em misoginia explícita, tal como faria um serial killer ou um predador sexual.

Não há beleza, riqueza, (aparente) devoção, nem mesmo máscara que esconda algo tão vil.

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1 comentário em “Crítica | Cinquenta Tons mais Escuros”

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