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Hebe – A Estrela do Brasil

Hebe - A Estrela do Brasil

112 minutos

Se você é meu leitor há mais tempo, sabe como critico as narrativas biográficas nacionais quando tentam abordar toda a carreira de seus biografados em apenas 2 horas. ‘Elis’, ‘Tim Maia’, ‘Gonzaga: De Pai Para Filho’ ou ‘Chacrinha: O Velho Guerreiro’ todos têm o mesmo defeito: a abordagem rasa, atropelada, preocupada com a quantidade no lugar de qualidade. Desta forma, qual não é meu alívio ao constatar que ‘Hebe: A Estrela do Brasil’ apenas recorta um instante da vida da apresentadora do rádio e televisão e, ao explorá-lo, tenta estabelecer e desenvolver as características que compunham sua personalidade.

Tendo isto em mente, o roteiro de Carolina Kotscho – que também escreveu a minissérie em 10 episódios com a personagem que estreará no próximo ano – viaja ao período 85/87, perto do término do regime de exceção da ditadura militar e da reunião da assembleia constituinte para redigir o texto que serviria de base para a democracia contemporânea. Neste período, a ‘mulher incontrolável’ e ‘subversiva com o microfone na mão’, ainda na TV Bandeirantes, enfrentava a censura, que considerava seu programa ao vivo uma ‘tribuna de aliciamento e apologia ao homossexualismo’. Ameaçada regularmente, Hebe, já cansada de ser censurada e explorada, pede demissão da emissora e muda para o SBT, onde lutará contra outra forma de censura, baseada na ameaça feita por parlamentares contra suas posições políticas.

Esta trama, que serve como fio condutor da narrativa apesar de ser menor aprofundada do que desejaríamos, tem como sua essência o papel encabeçado pela apresentadora em defesa dos direitos da comunidade LGBT. ‘Qual o problema em ser bicha?’ (sic) questiona-se Hebe inspirada pelos performers com quem dividia palco, colaboradores e ainda pelo filho (Horowicz), cuja homossexualidade é sugerida, apesar de não ser confirmada diretamente. Em paralelo, a narrativa aborda o encerramento do casamento de Hebe com Lélio (Ricca), por causa do ciúme doentio e violento do marido.

Chega a ser um retrato (triste) do tempo em que vivemos que as mesmas bandeiras erguidas há 30 anos permanecem atuais: a defesa de minorias, a epidemia de violência doméstica, a censura que retorna às manchetes etc. Assim, a Hebe não desejava ‘chocar ninguém’, mas é o autoritarismo que não suporta opiniões contrárias, tentando silenciá-las custe o que custar. Curioso que este regime, como apontado pela narrativa, é aquele que a Hebe endossou, bem como a campanha de Paulo Maluf, na tentativa de o roteiro tentar ser imparcial, quando na realidade apenas sobrevoa estes temas de passagem.

Embora uma crítica natural à narrativa seja a de ser favorável à Hebe como figura pública, ao menos não o é ao tratá-la como ser humano, retratando o consumo excessivo de álcool – apesar de não saber se é o suficiente para chamá-la de alcoólatra -, e a sensibilidade diante de fatos que não dependeriam de qual seja sua ideologia política, mas de caráter e moral. E Andrea Beltrão é muito competente em encarnar a apresentadora, física e emocionalmente, proporcionando junto ao brilho e glamour em frente à televisão a humanização detrás dela. Mas não dá para elogiá-la e esquecer o impressionante trabalho de Marco Ricca, que torna seu Lélio em uma figura amorosa, quando quer, e patética e violenta, quando consumido por ciúmes. Basta notar que o freio do personagem sempre é ao encarar o enteado, como se expusesse sua vergonha.

A narrativa é também uma viagem à televisão brasileira dos anos oitenta, com as figurações dos intérpretes de Sílvio Santos, Chacrinha (Otávio Augusto, em vez de Stepan Nercessian) Roberto Carlos, Nair Belo e Lolita Rodrigues, e o trabalho caprichoso de direção de arte na riqueza de detalhes da mansão onde habita e na diferenciação dos estúdios Bandeirantes e SBT. E não posso esquecer de enfatizar os ricos figurinos e penteados. Não a toa, o diretor Maurício Farias, marido de Andrea, inicia a narrativa a partir do close no cabelo de Hebe, a qual será a linguagem visual da câmera. É como se tentássemos acompanhar Hebe, passos a nossa frente, e compartilhássemos o auditório a partir de seu ponto de vista, confirmando ainda um virtuosismo técnico da direção caracterizado por planos longos e bem ensaiados.

Contudo, ‘Hebe’ tropeça pela dificuldade em administrar as frentes da narrativa, precisando apelar a antagonistas unidimensionais (o censor que é que manda em tudo ou o pai ausente e negligente, vidrado em corridas de cavalo até esquecer a data de aniversário do filho). A propósito, a presença de obstáculos não significa em recompensa satisfatória ao espectador, e não existe a sensação de que a Hebe Camargo falharia. Sabemos que isto não acontecerá, claro, porque conhecemos a trajetória dela, mas não existe urgência na narrativa, apenas o retrato de eventos sucessivos, bons ou maus, ou causos, como as galinhas batizadas a partir de marcas famosas.

Quem emenda tudo isto é a própria Andrea Beltrão, que confere uniformidade à narrativa, e o carinho que temos por esta gracinha da história brasileira. Uma que, mesmo dentro de sua torre de marfim inatingível, ainda percebia que antes de tudo seu telespectador é humano e merece ser tratado com dignidade.

Crítica publicada durante a cobertura da 47ª Festival de Cinema de Gramada

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