Às vezes, eu me cobro bastante por não acreditar nas fantasias com a mesma facilidade que faz a Gringa neste ‘Veneza’. Mesmo disposto a embarcar na gôndola Falabelliana do faz de conta, isto não aconteceu como desejaria ao longo da narrativa e, nestas horas, meu impulso inicial está em me eleger como culpado. É um erro de minha parte responsabilizar-me, eu sei, embora seja o instinto de quem enxerga em Miguel Falabella (ou noutro artista) um de seus ídolos no audiovisual nacional.
O roteiro adaptado da montagem teatral de Jorge Accamme viaja a um dos cafundós deste rico e imenso Brasil para visitar o bordel da Gringa (Maura), uma ex-prostituta que largou o amor de sua vida e, com isto, a possibilidade de morar em Veneza. Agora idosa, cega e com lapsos de senilidade, Gringa perde-se no amargor de seu canto de cisne (“Já estou morta”, grita). Por considerá-la uma ‘mãe’, Rita (Paes), auxiliada por Tonho (Moscovis), prometem realizar seu sonhos, mas esbarram na realidade logística e financeira de não ter como pagar para isto. Sobra-lhes somente uma viagem lúdica possibilitada por um circo itinerante na cidade em troca da mercadoria que podem providenciar as prostitutas, dentre elas Magadela (Castro) que também sonha em deixar para trás esta vida do bordel.
Conceitualmente, ‘Veneza’ é um projeto cheio de detalhes de encher os olhos, a começar pelo paralelo que traçado entre as três personagens femininas da narrativa: Gringa, aquela que, na juventude, escolheu não deixar a vida de prostituta para estar com Giácomo e agora, na terceira idade, somente pode reencontrá-lo na imaginação; Rita, confessadamente a mais pragmática e imobilizada naquela vida; e Madalena, que sonha em ir para São Paulo, apesar de o destino não concordar com este desejo. O trio simboliza etapas no ciclo de vida dentro do bordel, e não é a toa que Falabella é astuto em opor, em um momento, Rita e Madalena nos cantos da tela, como se separadas por um espelho etário. Se Rita um dia assumirá o posto de Gringa no bordel, não é difícil supor que Madalena, então, tomará o seu lugar.
Isto é feito não por palavras mas por rimas visuais, artifícios ricos e sutis com que Falabella trabalha a todo momento. Quando Tonho transporta o jukebox na caminhonete, a impressão que tive era de que eram barras de ouro, uma interpretação válida se considerarmos que o aparelho trará música àquele bordel esquecido no meio do nada e, com isto, riqueza; não apenas uma material, pois as fichas mal servirão para quitar o preço, mas cultural e também existencial. Ainda que Jerusa (Winits) não consiga ler as letras e números nas teclas da jukebox, ao menos pode apreciar a música que emana, ainda por cima aleatória. Pode ser uma canção alegre ou triste, dançante ou reflexiva, mas que fará companhia à ausência que sente na companhia daqueles homens.
Não é diferente do dia em que assistem ao drama (triste) no palco do circo. Falabella pinta de preto e branco o cenário e os personagens no picadeiro, o que cria, instantaneamente, um contraste entre a história dolorida contada pelo personagem de André Mattos e aquela vista na narrativa: uma que percorre toda a cartela de cores do arco-íris na fotografia de Gustavo Hadba e estabelece uma textura luminosa coerente com a proposta fantástica. E por falar na direção de fotografia, gosto de como Falabella reverencia o teatro com planos longo e bem ensaiados, que evitam cortes descabidos e a estética televisiva por uma mais vibrante.
É, eu gostaria de ter adorado ‘Veneza’, até porque não existe como não se encantar com a atuação de Dira Paes, uma das atrizes mais consistentes cinema brasileiro atual, e a doçura melancólica de Carol Castro, que é quem percorre o arco dramático mais evidente e tem um momento tristemente bonito quando revela seus olhos marejados ao ter que ‘liquidar’ uma dívida pela peruca perdida. Embora tenha ressalvas à atuação de Carmen Maura – sinto que cometo um pecado enquanto escrevo isto -, que além de ser repetitiva, está um tom além do desejado, é possível apreciar o contexto em que sua Gringa está inserida, retratado em flashbacks que tentam conversar com a narrativa em tempo presente.
Contudo, o resultado é bastante questionável em como ignora propositadamente a violência disfarçada de ‘afeto’ de Tonho, um literal filho da puta, alçando-o à condição de herói da trama até por serem as mulheres que pagam, com o próprio corpo, o preço do ambicioso plano. Sem jamais efetuar um juízo de valor em relação às atitudes de Tonho, é como se a narrativa compactuasse com sua misoginia. Não que falte consciência à Falabella, como ao retratar a violência a um personagem LGBTQ+, somente que, caso tratasse de frente com o mesmo rigor o comportamento de Tonho, a narrativa teria que ser reformulada da metade adiante.
Infelizmente, não posso rechaçar o tapa na cara que ‘Veneza’ me deu, dono de um anacronismo admirável em como resgata, na forma de uma neo-chanchada, o charme do realismo fantástico, mas datado em como varre debaixo do tapete questões essenciais.
Crítica publicada durante a cobertura do 47º Festival de Cinema de Gramado
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.