Apesar de serem protocolares quando comparadas com produções semelhantes, certas biografias, em formato documental ou ficcional, têm como mérito narrar a história de uma figura tão vibrante e apaixonante, que torna difícil atentar a aspectos mais ou menos burocráticos e convencionais. Por mais que estes estejam presentes na narrativa, se cuidados por uma direção hábil e talentosa como a de Joana Mariani, não interferem em como apreciamos o resultado final. Com isto, não quero dizer que basta narrar a história de uma figura pública igual a Sidney Magal que você pode escapar ileso do uso medíocre da linguagem cinematográfica, e ‘Bohemian Rhapsody’ está aí de contraprova, mas apenas que a forma não deve ser analisada isoladamente em descompasso com o coração.
Em ‘Me Chama que Eu Vou’, Sidney Magal abre um baú de memórias alimentado pela personalidade assumidamente narcisista a ponto de tornar-se acumulador de recortes de jornais e revistas, fotos e vídeos de arquivos suficientes para que Joana debruce-se e construa o mosaico da personalidade do cantor e dançarino. Os elementos formais são os habituais: o antes, relacionado cronologicamente, em contraponto com entrevistas na casa de Sidney, na Bahia. Como as engrenagens dialogam entre si, é aí que está a magia.
Dá para enxergar, na escolha de imagens e trechos de vídeos, a dualidade entre Magal e Magalhães, uma espécie de médico e monstro, ou a representação do ideário de uma vida de fantasia, não de realidade, uma encenação do eu-narcisista que existe, bem ou mal desenvolvido, dentro de nós, e um desejo intrigante de ser amado e discutido. Filho único de uma mãe que “não o forçou a cantar, mas o protegeu para cantar”, desde jovem Magal sonhou com a vida artística na sociedade dos anos 70, um cenário mais machista que os dias de hoje e que não estava pronto para compreendê-lo de imediato.
Inteligente a ponto de reconhecer ser usado pela máquina publicitária e utilizá-la como trampolim ao seu sucesso, o Magal de ontem era um objeto de inquisição por entrevistadores interessados na sexualidade sugerida pela liberdade de movimentos e pelo modo de vestir-se e tendentes a notícias falsas ou imprecisas apenas por serem sensacionalistas. Além de este ser o retrato do jornalismo de entretenimento da época, o documentário é evidência do pensamento do período e da forma como este mudou: uma canção como “Se te agarro com outro, te mato” seria impensável nos dias de hoje diante da epidemia da violência doméstica, e o fato de estar inserido no documentário é indicativo da jornada do cantor que a retirou da lista de shows.
A honestidade documental é admirável e reflexo da sinceridade do biografado, que não lamenta em reconhecer não ter técnica interpretativa, embora tenha sido sempre ator, e rememora os pontos baixos da carreira com ternura ao reconhecer, emocionado, as oportunidades que lhe foram dadas.
Como panorama de momentos da vida e carreira do ator, ‘Me Chama que Eu Vou’ opta por delimitar o recorte, e não abrange-lo. Por saber que 72 minutos não servem nem para arranhar a superfície da história do ícone, o documentário decota o verniz da personalidade de Magal e ilustra-o junto às suas canções mais dançantes. O resultado é vibrante, romântico e revelador.
Crítica publicada durante a cobertura do 48º Festival de Gramado.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.