Texto publicado durante a coberta da 44ª Mostra de Cinema em São Paulo
Casa de Antiguidades é um filme de ideias que emprega a jornada do protagonista Cristovam como o modo de circundar sofrimentos enraizadas e temas sociais escondidos detrás de mobílias, papéis de paredes e argamassa. Cristovam, vividamente interpretado por Antônio Pitanga, é mais símbolo do que gente. No lugar de um pano de fundo além de algumas breves pinceladas caracterizadoras, uma história brasileira construída na própria pele a partir da exploração da carne negra para produzir e saciar colonizadores no sul brasileiro, em um tempo indeterminado e fluido, que poderia ser desde à época da chegada do primeiro navio com africanos livres para serem escravizados até há algumas décadas, durante o surgimento do movimento separatista sulista.
Este é o motivo por que a empresa de laticínios, à qual Cristovam trabalha desde que a filial de Goiás fechou, reúne empregados, a maioria branca, para valer-se da condição de empregadores e estimular um ação separatista e segregacionista. Este ódio ao nortista e nordestino, ao negro, logo contamina os predispostos moradores da região a discriminar e cometer atos de violência, muitos fora do campo de visão do público, contra Cristovam, até que este comece um processo de perda da lucidez e acolhida do passado como meio de suportar o presente.
João Paulo Miranda Maria, em sua estreia na direção de longas-metragens, decora a narrativa com um conjunto de elementos metafóricos que, tal como a jornada de Cristovam, termina por conter significados mais amplos do que apenas aqueles contidos no quadro cinematográfico. Não é que a narrativa seja abstrata (não é) nem obedeça à estrutura de causa e efeito, mas sim que começa a ser mais natural, ou instintivo, perceber que a figura do homem negro no meio de brancos termine por oferecer mais camadas do que havia antes. Se Kleber Mendonça Filho e Júlio Dorneles estilizaram o sertão nordestino em Bacurau, a fim de exprimir críticas sociais na fantasia realisticamente filmada, João Paulo Miranda Maria torna o inusitado uma regra e se descola da realidade por que esta já não contém o discurso.
Desde o início alvo como o leite, em que Cristovam aparenta ser um astronauta em um planeta longínquo enquanto encara o furo na costura da luva como um buraco negro em direção à perda de tato com a realidade, a narrativa adota um estilo delirante, real apenas na síntese de temas. A trilha sonora de Nicolas Becker reforça esta atmosfera através de acordes discordantes, realçados por um controle meticuloso de câmera: a partir de travellings lentos e planos longos, com cortes escassos, João Paulo enfatiza o drama do absurdo em ter, ex. o chefe da empresa discursando em alemão a um empregado que não entende o idioma, ignorante ao fato de que é o candidato a perder direitos salariais. “Não tem outra forma?”, pergunta Cristovam, em resposta à única frase mal traduzida pela personagem vivida por Gilda Nomacce. A resposta é negativa, claro.
Já direção de fotografia de Benjamín Echazarreta (de Uma Mulher Fantástica) encontra expressão e força no rosto cansado do octogenário Antônio Pitanga, em todos os momentos em que é a moldura do quadro cinematográfico. Mesmo despido de muitos diálogos – justificado no racismo de ninguém desejar conversar com um senhor negro -, Antônio e a câmera estabelecem um diálogo de interesse mútuo e atenção. Se nenhuma flexão no rosto do ator nem uma mudança no olhar passam incólume pela lente, também o ator encena a esta o próprio delírio. Não é enlouquecer como consequência, mas como opção para escapar da realidade túrgida onde está.
Se não é frutífera a tentativa de Cristovam agir como zumbi naquele meio e resgatar senão os seus ou os mais indefesos, a própria dignidade, melhor retornar ao Goiás, aqui vernáculo para a África, e socorrer-se ao contato com a natureza mais primitiva. É melhor do que ter consciência da violência que sofre. Mesmo assim, pode ser que Casa de Antiguidades teime em não executar com precisão a narrativa encenada e termine por introduzir temas sem amadurecê-los, ex. o discurso feminista em órbita, mas que este realismo fantástico de João Paulo Miranda Maria é revigorante e encantador, ah isto é.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.