Caminhos da Memória é um filme que Christopher Nolan assinaria se tivesse a mesma sensibilidade de Lisa Joy, esposa de Jonathan, o irmão caçula daquele diretor. Ao invés de se render à tecnologia e/ou à inconclusividade, Lisa Joy retorna ao tema da série Westworld, co-criada ao lado do marido: a fuga da realidade. Se na série as pessoas fugiam em direção a mundos artificiais onde pudessem viver desejos reprimidos no mundo real, em Caminhos da Memória a válvula de escape é a ‘nostalgia que nunca sai de moda’. Em uma Miami inundada pelas águas e subdividida entre os barões donos de terras e aqueles que vivem abaixo do nível do mar, é justificável que se busque força para viver em memórias felizes, desenterradas por Nick (personagem interpretado por Hugh Jackman).
Como boa ficção-científica que é, a narrativa esforça-se para contextualizar, já nos minutos iniciais, qual o universo onde os eventos acontecerão: um plano sequência construído com auxílio de efeitos visuais revela arranha-céus parcialmente submersos, mas não destruídos como na distopia clássica, e se aproxima até chegar na camada mais pobre da sociedade, cercada por represas que mal contém as águas. Neste mundo, aprendemos que as pessoas substituíram o dia, insuportavelmente quente, pela noite, tolerável – o que favorece o estilo neo-noir adotado pela narrativa – e a sociedade está dividida da mesma forma em como a nossa está entre os que têm e os que não têm. Enquanto em Westworld, havia os humanos e as máquinas, aqui há ricos e pobres.
Apesar de o futuro proporcionar possibilidades infinitas, o homem permanece o mesmo, movido por emoções egoístas, como a obsessão (de Nick por Mae, personagem de Rebecca Ferguson) ou a ganância. Então, faz sentido que Lisa Joy adote o noir como o estilo da narrativa, por sua habilidade histórica em retratar o pessimismo. A partir da narração do anti-herói Nick, elemento tradicional no noir e que ajuda em estreitar relações com personagens com cuja moralidade não concordamos, descobrimos como conheceu Mae, a femme fatale que injeta cores vibrantes no mundo cinza antes de desaparecer misteriosamente. Em um mundo em que não há esperança, não apenas a nostalgia, mas também a idealização são motores para não permanecermos esperando o destino certo, e Nick parte em busca do paradeiro de Mae a partir de seus fragmentos de memória, basicamente ‘um homem vazio procurando uma mulher para culpar’.
A ideia de extrair informações da mente de terceiros não é nova (A Origem do cunhado Christopher é evidência disto), mas Lisa Joy evita caminhar a estrada da tecnologia e deixa a tecnologia somente em segundo plano como aquilo que é: o dispositivo, não o fim. A obtenção de provas de suspeitos ou testemunhas vasculhando o fluxo de memórias, o funcionamento e as consequências deste vício na nostalgia são colocadas em segundo plano para acompanharmos a jornada de um homem obcecado no papel de detetive amador, interpretado com a densidade emocional que Hugh Jackman costuma trazer a seus personagens.
Em um mundo de possibilidades, Lisa Joy optou pela menos interessante. A obsessão de Nick é tida por romantismo, enquanto empreende a jornada em busca do amor (?) perdido, de trás para frente. Nick pensa ser o Orfeu de uma Eurídice, no mito introduzido tardiamente no terceiro ato a fim de amarrar a ponta deixada no bordão: ‘Todos os finais são tristes, sobretudo quando a história é feliz’, fala Nick para o que Mae responde, ‘Então em conte uma história feliz e pare no meio’. Talvez isto tenha faltado a Caminhos da Memória: reconhecer o momento exato de parar, ao invés de procurar uma resolução corajosa, porém artificial, mais satisfatória no mundo das ideias do que na prática.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.