A privatização da Vale do Rio Doce é o ponto de partida para debater a prestabilidade humana enxergada no trabalho e em razão do tempo. Não digo o tempo cronológico, mas o tempo de mudanças sociais: no Brasil, durante o final dos anos 90, houve processos de privatização de muitas empresas estatais que modificaram o cenário brasileiro. Os valores mais liberais na economia desaguaram na sociedade, e logo o homem perdeu a âncora de valor e utilidade na empresa onde trabalhava há 10, 20, 30 anos, o sentimento de camaradagem cedeu o lugar à concorrência também interna em que colegas de trabalho competiam, bem além do campinho de futebol onde se divertiam no fim do expediente. Este cenário é debatido a partir do ponto de vista do Homem Onça do título, um exemplo concreto escolhido pelo diretor Vinícius Reis.
Na trama, Pedro é um empregado de uma estatal recém privatizada e que começa a enxergá-la entrar em inanição de recursos humanos e financeiros, para ser competitiva no mercado de ações (que não enxerga pessoas, nem famílias, somente números). Pedro até tenta se posicionar contra a mudança, mas não pode impedir o irrefreável. Seu conflito, portanto, é consigo mesmo, em tentar se encontrar dentro deste cenário de terra arrasada, depois de descobrir ter sido uma mentira seus 20 e tantos anos de vida. Isto justifica a escolha da estrutura da narrativa, dividida em dois marcos temporais, que revelam como Pedro perambula desorientado como uma onça por entre selvas: a de concreto e a do sítio para onde se mudou.
Pedro é a própria onça, que caminha em sentido contrário nos trilhos antes de ser arrastado pelo trem do progresso. A onça é também símbolo deste Brasil, que vende seu patrimônio para o mercado estrangeiro, posição criticada por Vinícius Reis. Entretanto, ao invés de abordar a narrativa do ponto de vista de Kátia, a funcionária demitida e não reposicionada no mercado de trabalho, ou de Dantas, o gerente do empreendimento que aceita a demissão com praticamente um indenização milionária, o roteiro aposta em um ponto de vista menos comum e portanto com sabor de novidade: o de Pedro, o intermediário chefe de uma equipe pequena e familiar. Seus figurinos amarrotados e destoantes revelam este homem desalinhado com os diretores em postos equivalentes ou mais altos, enquanto também desconfortável nesta “pele” de executivo que não é de onça.
Já a fotografia de João Atala sufoca Pedro em planos fechados com reduzida profundidade de campo e no interior dos cubículos da fictícia Gás do Brasil, enquanto o design de produção de Tainá Xavier vai na contramão e esvazia as salas de trabalho. É bastante intrigante como esta aparente contradição visual – como se sufocar se há mais espaço para respirar? -, atua a favor da narrativa: o vazio é do personagem, não de quem vê, o espectador. Uma cena que ilustra isto com clareza é o momento em que Pedro chuta a bola dentro da sala vazia, gesto a ser reproduzido pelo enteado noutro momento como forma de manifestar sua frustração. Neste instante, somente o espiamos à distância, mal podemos ver onde a bola bate. É que o vazio também oprime. Do lado de fora, Pedro não tem melhor sorte: a fotografia o coloca nos cantos diante de arranha-céus que devoram a paisagem, de forma irônica com o projeto com que o personagem sonhava.
Contudo, sonho mesmo é ter um ator como Chico Díaz protagonista: Chico é hábil como este Dom Quixote que esgrima contra um moinho invisível, o capitalismo neoliberal, e com o passar do tempo, acusa os golpes que sofre por não conseguir se adaptar a este tempo de mudanças. As consequências são ainda maiores a partir do momento em que enxerga no fundo da garrafa a forma de ignorar suas dores, nesta estrada cheia de baixos e o desejo de retornar à natureza original. Ao lado do ator, destacam-se Sílvia Buarque (que transforma a casa em depósito de seu empreendimento) e Emílio de Mello (cuja amargura só conheceremos ao fim), personagens que também refletem o comportamento de parte desta classe média diante do cenário em transformação.
Nesta jornada em que não há respostas do lado de fora, um Homem Onça igual a Pedro precisa encarar para dentro de si. Com um filme belo, poético e contemporâneo igual a este, afinal a privatização dos Correios está bem aí, o Festival de Gramado começa com o pé direito.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.