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Cry Macho

Cry Macho

104 minutos

Por Thiago Beranger

Em seus últimos filmes, o diretor e ator Clint Eastwood tem se dedicado a colocar em perspectiva várias das questões que o tornaram o astro que é. Sua imagem está muito associada à do cowboy de moral ambígua que encarnou em vários de seus trabalhos. Uma figura poderosa, de uma época em que o ideal de masculinidade estava bastante ligado à violência e a uma certa invulnerabilidade. Clint também é conhecido por seu posicionamento político. Republicano assumido, o diretor é tido por muitos como um reacionário. Não é simples assim. Se em vários filmes é possível observar posições conservadoras bem claras, em outros Clint defende pautas progressistas. Um bom exemplo é o filme “Crime Verdadeiro” de 1999, uma potente crítica à pena de morte e ao racismo estrutural. Nos últimos 3 longas (“Gran Torino”, “A Mula” e “Cry Macho”) o cineasta efetivamente se dedica a discutir o seu legado, partindo de uma desconstrução (e de uma reafirmação em alguns momentos) dessas características pessoais e artísticas que marcaram a sua vida e carreira.

Talvez “Cry Macho” seja o filme mais sensível dessa leva. Os temas políticos dão lugar principal a uma narrativa emocional, que combina bastante com o seu título. Clint aqui coloca em questão essa imagem preconcebida do cowboy “macho”, insensível e poderoso pra mostrar uma outra perspectiva dessa história. Seu personagem, Mike, é um treinador de cavalos texano que no final da vida se encontra em crise: desempregado, solitário após perder esposa e filho e se mantendo através de favores do seu antigo chefe, Howard (Dwight Yoakam). É ele quem, cobrando esses favores, pede a Mike que vá até o México para buscar Rafa (Eduardo Minett), seu filho de 13 anos que sofre com os abusos da mãe. Nessa viagem de retorno, Rafa e Mike são perseguidos e acabam se refugiando em uma pequena cidade no interior do país, onde estabelecem uma genuína conexão.

Esse diálogo entre gerações lembra um pouco o que Clint já havia feito em “Gran Torino”. Lá havia um teor étnico na discussão. Aqui o diretor revisita, através do diálogo com o personagem mais jovem, a sua história como um dos maiores cowboys do cinema em todos os tempos. Eastwood talvez seja, junto com John Wayne, a mais icônica representação desse “herói”, que foi utilizado historicamente como símbolo da dominação cultural norte-americana. É com essa concepção clássica que Rafa enxerga a imagem do cowboy, alguém invulnerável, corajoso, forte. O ideal de masculinidade que o menino tem em seu imaginário é assim, por isso ele vive repetindo que é “macho”, como o galo de briga ao qual deu esse nome. Mike, por outro lado, é um homem vulnerável. O outrora galã Clint já possui 91 anos de vida e, apesar de conservado, apresenta características próprias de sua idade. Essa imagem frágil do ator contribui bastante para a construção do personagem e consequente desconstrução da imagem do cowboy viril que ostentou por tantos e tantos anos, representando também de alguma forma a decadência do estilo de vida americano. Mas esse processo não fica só na velhice e na fragilidade física, ele também se incorpora a uma fragilidade socio/econômica do personagem.

O protagonista é alguém mal sucedido financeiramente e mais do que isso, quase submisso ao seu patrão. Ele está longe de emular o cowboy livre, poderoso que conquistava a natureza e subjugava quem quer que se intrometesse no seu caminho. O estadounidense mais do que nunca se encontra nessa situação. Se o país continua sendo uma grande potência internacional, internamente a desigualdade social só aumenta, os índices de desemprego e trabalho informal estão alarmantes e os indicadores de pobreza estão entre os piores se comparados aos de outros países desenvolvidos. A derrocada do “american dream” gerou nos últimos anos uma crise social que levou à eleição de Donald Trump e a uma profunda divisão política/ideológica parecida, em alguns sentidos, com a que vivemos aqui no Brasil. “Cry Macho” vem portanto na esteira de toda essa crise fazer o questionamento: o que, afinal de contas, o cowboy simboliza nos dias de hoje?

O filme chega até a ser didático demais nesse sentido. Os diálogos entre os protagonistas fazem questão de enfatizar o tempo todo o tema. Um bom exemplo desse didatismo é quando Mike troca de roupa, se despindo da paramentação clássica do cowboy e vestindo um traje tipicamente mexicano. O momento é simbolicamente interessante, uma vez que tradicionalmente esse mesmo cowboy subjugava homens e mulheres de outras etnias. O problema é que logo depois Rafa comenta com todas as letras que o amigo entrou na loja de roupas “um gringo e saiu como um mexicano”. Esse tipo de situação se repete ao longo do filme inteiro. Não há nenhuma sutileza nesse sentido. Não há simbologia que não seja verbalizada explicitamente.

Se esse didatismo exacerbado incomoda, não deixa de ser positivo ouvir da boca de Clint Eastwood que “sempre achou essa história de macho algo supervalorizado”. É legítima e até tocante a disposição de alguém, com a carreira que ele possui, fazer esse tipo de revisão em sua história. Isso dá origem a momentos preciosos, como quando o filme para pra assistirmos a uma dança entre Mike e Marta (Natalia Traven), seu interesse romântico, ou pra vermos o personagem cuidar com ternura de cavalos e outros animais. São momentos em que essa imagem do cowboy durão é totalmente ressignificada pela lógica do afeto. O diretor assim, traça uma receita para a resolução ou diminuição de toda essa crise vivida nos dias de hoje: um norte-americano de relações menos impositivas, menos “macho”, menos preocupado em conquistar e dominar. Um cowboy com um olhar humano, humilde e amoroso.

“Cry Macho” está longe de ser uma obra prima. É um filme que possui problemas, um elenco questionável e em alguns momentos um didatismo incômodo, mas prefiro olhar por outro lado. Prefiro enxergar a humildade de um senhor de 91 anos em revisitar a sua carreira para fazer um balanço da imagem que construiu e de questionar tudo isso. Clint é uma lenda do cinema e da cultura ocidental, mas, assim como o seu filme, está longe de ser perfeito. Possui, como todo ser humano, contradições que podem e devem ser problematizadas e é bonito ver isso vindo dele próprio. Se esse realmente for o seu último filme, é uma despedida mais do que digna, não por ser o melhor filme de sua carreira, mas por servir como um abraço quentinho e afetuoso de uma figura que vai ficar pra sempre na memória de todo mundo que ama cinema.

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