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A Tragédia de Macbeth

A Tragédia de Macbeth

105 minutos

Joel Coen experimenta ao propor um estudo sobre as distâncias no cinema em seu primeiro trabalho sem o irmão Ethan.

Por Thiago Beranger.

Como é de conhecimento geral, “Macbeth”, a tragédia escrita por Willian Shakespeare no século XVII é um texto pensado originalmente para o teatro. A história de um regicida que precisa lidar com as consequências e a culpa pelo seu crime já foi adaptada diversas vezes para o cinema, através do olhar de grandes cineastas como Orson Welles, Akira Kurosawa e Roman Polanski. A recente adaptação de Joel Coen, um dos grandes cineastas do nosso tempo, vai à origem do texto refletir sobre uma das grandes diferenças que existem entre o cinema e o teatro: a distância. Se na sétima arte o autor possui o artifício da câmera, que possibilita que ele aproxime “fisicamente” e psicologicamente o espectador do objeto através de planos fechados, no teatro há um espaço que naturalmente se impõe entre observador e observado. Essa diferença gera diversas consequências, e em seu filme, Coen estabelece uma narrativa que busca transpor para a linguagem cinematográfica uma experiência teatral de distanciamento em relação ao espaço diegético, ainda que por meios diferentes.

Na produção, Denzel Washington interpreta o general Macbeth que, após vencer uma grande batalha em nome do Rei Duncan (Brendan Gleeson), ouve de bruxas a profecia de que seria coroado rei. Contaminado pela ambição e incentivado por sua esposa, Lady Macbeth (Frances McDormand), o general trai seu mestre e, sem ser descoberto, consegue atingir o seu objetivo. Tomado pela culpa, Macbeth precisa lidar com os fantasmas do que fez, enquanto tenta evitar que a segunda parte da profecia, a que diz que os filhos de seu companheiro de batalha Banquo (Bertie Carvel) dariam origem a uma dinastia de reis, se concretize.

Denzel Washington protagoniza o filme, conferindo todo o seu peso dramático ao personagem.

As primeiras distâncias com as quais o filme lida são as que ficam mais aparentes e saltam aos olhos através da incrível fotografia de Bruno Delbonnel. O trabalho do fotógrafo e da equipe de design de produção liderada por Stefan Dechant é meticuloso ao construir cenários que remetem ao expressionismo alemão. O cálculo das distâncias entre os elementos cênicos para gerar luzes e sombras geométricas que compõem os planos filmados em preto e branco, através de enquadramentos também milimetricamente pensados, é extremamente eficiente na construção de cenários teatrais. A imponência arquitetônica do palácio entra em contraste com o minimalismo trabalhado em seu preenchimento. São espaços grandiosos mas vazios, estéreis, palcos livres nos quais os atores performam seus personagens.

Em diversas sequências do longa, a forma com a qual os cenários impactam na dramatização fica evidente. Gosto em especial da cena onde Macbeth se direciona à porta do quarto de Duncan, no monólogo a respeito do punhal que vê a sua frente. Nesse momento, há um corredor onde a luz se faz presente através dos arcos dispostos simetricamente ao longo de toda a extensão do caminho que o protagonista vai percorrer. À medida em que ele avança, seu rosto fica ora iluminado, ora nas sombras, ilustrando o dilema que o personagem enfrenta desde o princípio do filme: dar vazão à sombra de sua ambição, ou à luz que representa a sua lealdade e correção. Em seu caminhar, Macbeth permanece exatamente o mesmo tempo na luz e na sombra. Dá pra saber pelo som dos seus passos perfeitamente ritmados (que é evidenciado pelo design sonoro), até que no final do corredor, ele adentra à escuridão da porta selando assim o seu destino.

O corredor em que Macbeth vive seu dilema. Formas geométricas/luz e sombra.

Na construção espacial do filme há também uma outra distância importante: a que existe entre os personagens. Os atores são dispostos em cena de forma simétrica, ocupando os grandes vãos onde as cenas são ambientadas. Essa distância física poucas vezes é quebrada e revela também uma distância psicológica que há entre os membros da corte escocesa. Os personagens não entendem as verdadeiras intenções uns dos outros. Se escondem através de máscaras e de aparências como o próprio Macbeth revela, ao dizer para sua esposa tratar todos com gentileza para que a: “face falsa oculte o que se passa no coração”. É uma distância cerimoniosa, quase que solene, que oculta a própria natureza dos personagens. Um tema comum a histórias que envolvem intrigas palacianas e jogos de poder, que Joel Coen retoma com muita propriedade.

Ao passo em que esse espaço se impõe entre os personagens, também há um distanciamento entre filme e espectador. Apesar da proximidade física que o artifício cinematográfico nos possibilita através de enquadramentos mais fechados, a frieza com a qual a narrativa se constrói do ponto de vista visual, dramático e psicológico nos afasta de uma relação empática com a trama. Assistir a “A Tragédia de Macbeth” é uma experiência que passa muito mais pela racionalização dos estímulos visuais do que por um envolvimento emocional ou afetivo com a obra. Não há muito espaço para emoções diante dos cálculos precisos realizados na feitura do longa, mas também pelos próprios personagens que pensam suas ações como jogadas em um tabuleiro de xadrez. Mesmo os mais virtuosos, como Macduff (Corey Hawkins) ainda se deixam contaminar por essa lógica. O algoz de Macbeth coloca a vida da sua própria família a perder por conta do seu “dever” enquanto cavaleiro. O movimento parece muito mais frio do que heroico nessa versão da história.

A amplitude do espaço contrasta com o minimalismo em seu preenchimento.

Por fim, uma última distância, não física, mas cronológica, se revela a mais desafiadora abordada pelo filme. Coen, que também assina a adaptação do roteiro para o cinema, escolhe fazer poucas atualizações no texto original de Shakespeare. As linhas verbalizadas pelo ótimo elenco parecem ter saído diretamente da peça escrita no século XVII, tornando a experiência ainda mais desafiadora. Um espectador menos atento se perde em meio às divagações dos personagens em linguagem mais versada do que prosáica. As bruxas interpretadas por Kathryn Hunter, por exemplo, se comunicam por meio de versos rimados, dificultando a compreensão de quem está acostumado com textos coloquiais. A distância derradeira a ser superada é a que existe entre a escrita dramatúrgica de Shakespeare no século XVII e os roteiros cinematográficos do século XXI, em especial os hollywoodianos, que prezam por uma comunicação bem mais imediata com o grande público.

Acontece que essa escolha integra-se muito bem à narrativa proposta e fecha o ciclo do desafio ao qual o filme se propõe. É difícil se aproximar de algo que está o tempo todo exigindo uma compreensão um pouco mais intelectualizada. A distância se impõe também pela linguagem textual e faz com que no final tudo pareça vazio demais para gerar um efeito. Por isso, “A Tragédia de Macbeth” é um filme melhor quando assimilado, quando revisto, quando examinado com a atenção de quem já não está preocupado com o imediato e se dá a oportunidade de superar as distâncias para entrar no mundo geométrico desse experimento cinematográfico repleto de complexidade.

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