Um estudo de personagem com ecos de O Lutador e direção do austríaco Ulrich Seidl
Se Fábio Júnior morasse em uma vila na Itália (San Marino, para ser mais preciso), realizando shows em hotéis e restaurantes para um público escasso, apesar de fiel de pessoa idosas que se apaixonaram ouvindo suas baladas românticas, prostituindo-se com suas fãs para faturar mais alguns trocados e vivendo de uma glória do passado em pôsteres de tempos áureos e figurinos dentro de uma guarda-roupa que deve cheirar a naftalina, talvez fosse uma espécie de Richie Bravo, protagonista de Rimini. Interpretado por Michael Thomas, caracterizado como o encontro entre o cantor James Hetfield do Metallica e dos atores Ray Stevenson e Mickey Rourke, Richie Bravo, e a cultura que encena, são os objetos discutidos pelo diretor austríaco Ulrich Seidl (de Safári).
Rimini tem início com o retorno de Richie à Áustria em razão da morte da mãe e da internação do pai em uma clínica especializada para pessoas com alguma forma de demência. Este é apenas um dos muitos elementos deste estudo de um personagem superficial embora ironicamente complexo. Ulrich trabalha na base da repetição, a ponto de estabelecer uma rotina com que Richie esteja confortável. Ele encara com um sorriso e muito amor a própria decadência, enquanto entorna garrafas de álcool. Mas beber não é um entorpecente para Richie, porque Seidl não formula um juízo a este respeito. Richie não é tolo e reconhece que não é quem fora um dia, mas tampouco é um homem que amaldiçoa o próprio azar, os shows vazios, as oportunidades perdidas ou o frio da costa italiana. Apenas sobrevive, dia a dia, sem pensar criticamente a respeito da própria situação.
A fotografia de Wolfgang Thaler aposta em planos abertos que revelam a lotação dos shows de Richie em contraponto com uma figura solitária que tenta animar um público cansado o bastante para se levantar e dançar. Acompanhado apenas do tecladistas, escondido às vezes detrás de uma coluna, Seidl revela o absurdo que é de um ídolo espremer a barriga (com auxílio de uma cinta) para caber no figurino que utilizou décadas antes. Esta inadequação manifestada nos figurinos, no cabelo platinado ou na pele lustrosa é acompanhada por tomadas externas do inverno naquela região: coberto por uma neblina espessa, que mal permite enxergar um palmo adiante, e um frio que obriga a utilização de camadas de pele tão exóticas quanto é o próprio Richie.
É o reencontro com a filha de 18 anos, Tessa (Göttlicher), que lhe devolve algum senso de propósito nesta vida de repetições e excessos. Ela lhe dá um ultimato compensatório: uma quantia para que apague o histórico de pai ausente e, talvez, a oportunidade de tentar restabelecer um laço fraterno. Sendo assim, a narrativa estabelece um eco entre a internação do pai (ainda por cima, um admirador do regime nazista) como um reflexo metafórico do estágio atual do relacionamento com a filha, em que o mais curioso é enxergar se as declarações de amor ou lágrima são um grito de socorro de Richie para reatar com Tessa ou os esforços de um ator / cantor medíocre. A dúvida enriquece porque Seidl evita sufocar a narrativa de sentimentos. Para ele, basta o humor ácido.
Esta mesma dúvida acompanha as performances sexuais do protagonista, já que não temos certeza se Richie apenas transa com as fãs exclusivamente pelo dinheiro ou se há a componente mais melancólica de um homem tentando resgatar a virilidade que possuía no auge da vida. Enquanto interpreta na cama como um cantor em playback de uma composição que ele próprio escreveu, Richie parece ter prazer, não próprio, mas em dar prazer.
Apesar de aparentar ser divertida na superfície, e até é, a melancolia da narrativa está em como revela uma apatia tamanha que Richie mal enxerga o estado deplorável da vida que leva. Não é que Richie não perceba a depressiva realidade em que habita nem que não sofra pela vida que leva, é que só parou de se importar em retirar a máscara do cantor de serestas românticas que foi um dia. Não há romance. Não há amor próprio. Há somente o ciclo vicioso e dotado de repetições em um desfecho poderoso – apesar de aparentar um anti-clímax – em como ilustr como Richie simplesmente não se importa mais.
Crítica publicada durante a cobertura do 72º Festival de Berlim/2022
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.