Aumentando seu amor pelo cinema a cada crítica

Diário do Festival de Cannes, Dia 1

Documentários e zumbis no primeiro dia

A partir de hoje, uma série de publicações com as críticas diárias dos filmes que conferi na minha primeira cobertura do Festival de Cannes. 

For the Sake of Peace (2022)

No Festival de Berlim deste ano, através de No Simple Way Home, tomei conhecimento da guerra movida por causas religiosas entre os sudaneses do norte, muçulmanos, e os do sul, cristãos na maioria, e como isto resultou na cisão do país e na independência do Sudão do Sul.  Quem contava isto na forma de documentário era Akuol de Mabior, filha do então vice-presidente do Sudão, dissidente, exilado e falecido John Garang. A visão de Akuol poderia estar contaminada em razão da herança política, embora seja a visão de uma pessoa que vive os conflitos que a inspiraram a contar tal história. 

Meses mais tarde, com produção da ONG criada pelo ator Forest Whitaker, Peace and Development Initiative (ou Iniciativa de Paz e Desenvolvimento), os diretores franceses (e brancos) Christophe Castagne e Thomas Sametin apresentaram este documentário que enfatiza a questão da pacificação no já independente Sudão do Sul, em razão dos conflitos tribais ou entre clãs que custavam a vida e o progresso no país. A proposta do documentário tenta resgatar o que movia Jean Rouch em seu cinema etnográfico dos anos 50 e 60. É a visão do Outro dada por quem está de fora, enquanto, no filme que citei acima, é a visão do Outro por quem integra o meio. 

Não há intermediação da dupla de diretores em entrevistas ou participação direta, senão através do recorte da câmera e da estruturação da linha narrativa. Christophe e Thomas enxergam com curiosidade o que Akuol enxergaria com naturalidade, e não é que isto torne melhor ou pior a experiência, apenas a diferencia. Para a dupla de diretores, a mediação é comparada com uma partida de futebol, em que a juventude aprende a vencer e, mais importante, a perder. É uma metáfora óbvia, mas eficaz em estabelecer o paralelo entre Gatjang (árbitro de futebol habitante de campo de refugiados) e Nandege (mediadora da ONG).

Menos eficiente é como um documentário, produzido por uma ONG cujo objetivo é restabelecer a paz em ambientes hostis, fabrica um conflito dramático e o suspense atrelado a ele em sugerir que Nandege falharia no processo de mediação: “não confie em Komol”, comenta a voz no telefone, mesmo que não houvessem sido dados motivos para isto. Ainda mais problemática é a participação de Forest Whitaker no documentário: o patrono da ONG surgir discretamente no início ou no final, junto a Nandege na conferência de Genebra, pode até conferir verossimilhança ao narrado, até Whitaker abrir a boca e chamar os clãs ou tribos africanas de gangues. 

Eu entendo de onde vem a lógica da comparação: Forest é americano e conhece melhor a realidade das ruas de seu país. Entretanto, a carga pejorativa que há na palavra vai de encontro à tentativa do processo de humanização do Outro, retirado de sua humanidade. É uma frase infeliz que coroa um documentário bem intencionado, embora mais autocongratulatório do que desejado. 

Coupez! (2022), de Michel Hazanavicius

Refilmagem de Plano-Sequência dos Mortos, comédia de terror de 2017 do diretor japonês Shin’ichirô Ueda, Coupez! tem uma história de distribuição conturbada: o filme havia sido selecionado para debutar no Festival de Sundance e, após o festival decidir migrar para o on-line em vez do presencial em virtude do aumento de casos da variante Ômicron, o diretor Michel Hazanavicius decidiu retirá-lo de exibição. Isto criou um sentimento de antipatia em direção à refilmagem que, por não ser um produto original, já havia acumulado sua parcela de ódio gratuito. 

Ainda por cima, dias antes de estrear no festival, a produção decidiu rebatizar o filme do título anterior, Z, motivado pela Guerra na Ucrânia. Pronto, o que havia sido uma tentativa de gesto de sensibilidade com o conflito, logo se transformou no motivo para problematização. Tudo fora da esfera narrativa, já que ninguém ainda havia visto a escolha de filme de abertura do Festival deste ano. 

O roteiro não diverge do original e acompanha a equipe de filmagem encabeçada pelo diretor esquentadinho Rémi (Romain Duris) durante a produção de um filme trash de zumbis desavergonhado com, por exemplo, a maquiagem azul de Raphaël (Finnegan Oldfield) ou a falsa atuação de Ava (Matilda Anna Ingrid Lutz). Enquanto tentam acertar a cena final para encerrar a produção, a trupe é surpreendida com uma lenda que amaldiçoa o local das filmagens em razão de experimentos realizados por japoneses (?!) durante a 2ª Guerra Mundial. 

O que o título da refilmagem francesa não conta é que a narrativa é fotografada em plano-sequência (real ou ilusório, nos movimentos de câmera bem velozes em que um montador pode “esconder” o corte). Também não conta que Michel Hazanavicius utilizaria o veículo para uma série de comentários e críticas. A começar em torno do próprio subgênero terrir e da metáfora criada e alimentada por críticos e fãs de subtextos consumistas e capitalistas detrás das obras de zumbis clássicas de George Romero. Daí, o diretor critica a abusividade dos diretores que tentam retirar, a ferro e fogo, a verdade de seus atores ou a postura de atores que entram de cabeça, literalmente, na vida dos personagens. Há comentários sobre os meios de produção e as rotinas de filmagens feitas com bom humor e ênfase nos excessos – que caracterizam uma parte da produção japonesa e que criam um certo estranhamento dentro do cinema francês. 

Ainda assim, o mérito de Coupez! está em construir, desconstruir e revelar os bastidores do processo criativo e “criativo” cinematográfico com bom humor e algum excesso de fluidos corporais. É um processo que se revela além do planejamento, na capacidade de improvisar dentro de uma situação limite fomentada por uma indústria que exige produções mais rápidas, menos custosas mas decentes. Michel dirige um elenco que não poupa esforços para ser a versão mais over que podem ser de seus personagens: além dos já citados, Bérenice Bejo e Jean-Pascal Hadi completam o elenco da narrativa que, no meio de tudo isto, ainda tenta remendar a relação entre pai e filha. 

Estruturalmente inventivo – até o ponto em que uma refilmagem pode ser inventiva, claro -, Coupez! desafia a tolerância do espectador com produções B a partir de seu virtuosismo cinematográfico, derrapa ao introduzir o histórico da produção, e reconquista o espectador depois. É o tipo de refilmagem que diverte pelos próprios méritos e convida o espectador a visitar a produção original, que, aliás, é imperdível.

Compartilhe

Facebook
Twitter
LinkedIn
WhatsApp

2 comentários em “Diário do Festival de Cannes, Dia 1”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você também pode gostar de:

Área Q

(Área Q.), Estados Unidos/Brasil, 2011. Direção: Gerson Sanginitto.

Rolar para cima