Drama dirigido, escrito e estrelado por Julie Delpy discute maternidade
Ainda não tenho filhos, mas já sonhei com seus nomes, suas personalidades e suas conquistas, e quando esbarro em dramas iguais a Minha Zoe, Minha Vida, reflito no pai que espero ser a partir da comparação com a trajetória dos personagens vistos em cena. Pois a proposta da diretora, roteirista e atriz Julie Delpy é a de explorar a profundidade e resiliência do amor de mãe diante da situação aguda apresentada. Não é nenhum mistério a dureza e dificuldade do que é proposto.
Antes de chegar no ponto xis, o roteiro apresenta Isabelle, cuja profissão de geneticista é de vital importância à decisão que tomará adiante, e James, o ex-marido arquiteto. O ex-casal está no processo turbulento de decidir os detalhes da guarda compartilhada de Zoe, garota de 7 anos e que atrai o sol por onde passa. Vindo da casa do pai à casa da mãe, rotina a que está acostumada, Zoe apresenta um mal estar que a leva à emergência do hospital. O diagnóstico? Um aneurisma devido ao impacto no parque onde brincava que coloca em risco a vida e, ainda que sobreviva, a qualidade de vida após a cirurgia a que é submetida.
Ao chegar nesse momento da narrativa, a decisão estética de Julie Delpy é óbvia, mas não menos eficiente por isto. Onde havia sol, restam sombras, tonalidades azuis e preto, cores que descrevem a melancolia e desesperança em torno da situação melhor do que palavras. Até porque as palavras servem somente para a troca de farpas, mágoas e arrependimentos: Isabelle é culpada pelo relacionamento que mantém, culpada por ter rompido o casamento, culpada pelas palavras insensíveis de James. Ainda é aterrorizada, na falta de uma palavra melhor, pela insensibilidade médica. O roteiro explora esta dinâmica dos casais e dentro do hospital, mas sabe bem qual o foco da narrativa: a dedicação da mãe em manter a filha viva custe o que custar.
É quando Minha Zoe, Minha Vida toma uma decisão que jamais havia previsto, ainda mais dentro da embalagem de drama melancólico, mas não melodramático, e niilista que parecia ser. Não entrarei em maiores detalhes, apesar de a lógica adotada por Julie Delpy discutir o amor de Isabelle de maneira polêmica e a incapacidade dela encarar a realidade ao redor. A diretora expõe a decisão tomada pela personagem que interpreta, mas evita julgá-la por causa disto. É um caso de cumplicidade mantido entre as partes, e somente entre elas, não juntamente com os personagens e o espectador, liberados para questionar ou julgar qual o limite ou mesmo se há limite na maternidade.
Os questionamentos são abundantes: será que a decisão de Isabelle é menos fruto de amor pela filha e mais fruto de amor em ser mãe? Será que não é um mecanismo de fuga, quiçá abandono, em favor do comportamento obsessivo – realista, não aquele manifestado de um jeito clichê – na atuação enxuta e dolorida de Julie Delpy? Será que estou apto a julgá-la pela decisão que toma na minha condição de homem sem filhos?
A direção mantém o pé no realismo, rejeita a trilha sonora – que poderia açucarar o amargo – e investe em uma encenação bastante seca e desencantada. O rosto dos personagens é o sinônimo do que a diretora aspira em termos formais: a mesma sensação de exaustão provocada por dias ininterruptos no hospital, o sufocamento de quem deseja acordar de um pesadelo e não consegue. De modo simples, sem arroubos nem excessos, a diretora atinge o nervo e, embora trate de um tema comumente explorado no cinema dramático, propõe algo que o diferencie de exemplares anteriores.
A conclusão irreal e otimista parece destoar da lógica mundana, mas não do compromisso da direção em restituir o objeto de desejo a quem tanto o buscou, mesmo que esta busca esteja pautada na fuga e leve, ao pé da letra, o pronome possessivo no título.
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Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
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