Um retrato familiar sobre o qual o espectador pode projetar sua família
Já há algum tempo, a produtora belorizontina “Filmes de Plástico” tem contado histórias sensíveis e emocionantes do Brasil real, desde a formação do elenco com a presença de atores não profissionais até a elaboração de situações concretas. Seus Ela Volta na Quinta, Temporada e No Coração do Mundo, co-dirigido por Gabriel Martins, que assina, solo, este Marte Um, são narrativas cujo impacto está em reconhecer a característica cinematográfica que existe na vivência e experiência de pessoas com que poderíamos esbarrar na rua. É a poesia do mundano, um cinema-espelho em que o público pode projetar, com facilidade até, seus sonhos e suas dores e reconhecer-se nos personagens colocados de si.
Marte Um encontra raiz na família Martins, representativa de parte das famílias brasileiras. Não em razão de aspectos individuais dos personagens, mas da maneira com que a família aperta os sonhos dentro de planilhas mensais de gastos e costura os laços afetivos a partir de relações particulares naquele microssistema que, enxergadas de fora, através da direção empática de Gabriel Martins, tornam-se relações universais. Deivinho (Cícero) tem o sonho de ser astrofísico e estar a bordo da missão de colonização de Marte, embora o pai (Carlos) tenha feito planos de que o filho fosse atacante do Cruzeiro. O pai, Wellington, alcoólatra em recuperação há 4 anos, trabalha como porteiro em um condomínio de classe média e ensina o ofício a Flávio (Russo), crítico à exploração do mercado de trabalho na sociedade brasileira. A mãe e esposa Tércia (Rejane) trabalha como diarista e atravessa uma crise de ansiedade engatilhada após participar, sem saber, de esquete de programa de pegadinha. A família ainda conta com Eunice (Camilla), aluna universitária, que decide morar ao lado da namorada, apresentada à família como amiga.
O roteiro de Marte Um não procura um evento específico para desencadear um processo de cura e transformação, clichê comum em dramas familiares norte-americanos. Em vez disso, há diversos obstáculos rotineiros que, articulados entre si, tornam-se o desafio da família: a resiliência em forma de esperança e a estreiteza dos laços em face a frustrações e ao amargor. É possível antecipar, a título de exemplo, que a ficha de 4 anos de sobriedade que Wellington carrega consigo no cordão é sugestiva de que haverá uma recaída à frente no caminho. Pois a narrativa não é sobre a iminência da recaída, mas como esta resulta das sementes plantadas no roteiro e como a família, como um núcleo, reagirá à ela. Da mesma forma, a procura de moradia e a mudança de Eunice não são conflitos centrais, embora produzam a consequência da frustração de não ter sido visitada pelos pais e da distância de Deivinho, com impacto no sonho dele de assistir à palestra de Neil deGrasse Tyson.
Não há como retirar dessa estrutura interdependente conflito que seja, sob o risco de ruir, como um castelo de cartas, a trama inteira. Isso ensina sobre família, em como a felicidade do membro é indispensável à família do todo. A família torna-se sinônimo de constelação, a reunião de estrelas cuja denominação provém da união, não do isolamento. Deste modo, Marte Um é um exemplar raríssimo do drama familiar, que respeita a individualidade dos personagens, mas a enxerga no contexto da família. Noutras palavras, é sobre Eunice ser a pessoa que deseja ser, estar com quem deseja estar e nos termos que deseja, e como isso altera a dinâmica das relações da família, que é o protagonista da narrativa.
Gabriel Martins encara os personagens com sensibilidade e encantamento, aproximando a câmera deles até criarmos relação com os sonhos existentes no imaginário e adicionando humor a fim de atenuar o contexto dramático. Um humor expresso casualmente na forma de gírias ou de situações cômicas, equilibrado com a crítica social não panfletária, ainda que visível. Gabriel é auxiliado pelo elenco entrosado e hábil em expressar sutis e significativos sentimentos, a ponto de acreditarmos que Camilla Damião, Carlos Francisco, Rejane Faria e Cícero Lucas são membros de uma família real, não de faz de conta.
Uma família que vive no bordão “a gente dá um jeito”, pois entende que não são milhões de reais, mas o laço de amor e o suporte mútuo, literal às vezes, os elementos indispensáveis para dormir e poder sonhar.
Crítica publicada durante a cobertura do 50º Festival de Cinema de Gramado
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.