David Leitch nos conduz por uma montanha russa de acontecimentos que revelam a artificialidade do cinema à medida em que reconhecem que quem comanda o destino de um filme é o autor.
Por Thiago Beranger.
Nos últimos anos o cinema de ação ganhou uma boa leva de realizadores advindos de uma função muitas vezes subestimada na sétima arte: os dublês. Diversos coordenadores de dublês de grandes produções vem se lançando como cineastas e produzindo trabalhos bastante interessantes. Os maiores exemplos dessa tendência talvez sejam Chad Stahelski da franquia “John Wick”, Sam Hargrave de “Resgate” (2020) e David Leitch que co-dirigiu o primeiro “John Wick” (2014), dirigiu “Atômica” (2017) e logo depois assumiu a liderança de trabalhos em grandes franquias, trazendo ao mundo “Deadpool 2” (2018) e “Velozes e Furiosos: Hobbs & Shawn” (2019). Esses filmes se notabilizaram por um foco na coreografia e na realização de stunts, construindo a mise en scène de forma a evidenciar com clareza os corpos e movimentos dos atores em cena.
Aqui, essa tendência, sob o comando de Leitch, ajuda a contar a história de Joaninha (Pitt), uma espécie de mercenário que é contratado de última hora para realizar um serviço aparentemente simples: roubar uma maleta de um trem-bala que vai de Tokyo até Kyoto. Contudo, dentro do trem ele se depara com diversos outros personagens que têm interesses conflitantes com os seus, como é o caso dos também mercenários Tangerina (Taylor-Johnson) e Limão (Tyree Henry), do traficante “El Lobo” (Bad Bunny) e da misteriosa “The Prince” – ou “A Príncipe” em uma tradução mais contextual – interpretada por Joey King. Pouco a pouco as relações entre todos vão ficando claras e Joaninha se vê em uma confusão da qual não vai ser fácil se livrar.
“Trem-Bala” bebe claramente da fonte do cinema oriental em sua ambientação estética. O Japão, local onde o filme se passa, oferece uma série de referências visuais para um cinema que quer brincar narrativamente com sua própria artificialidade. A primeira é o contraste entre elementos tradicionais – samurais, katanas, arquitetura, artes marciais – e elementos contemporâneos que flertam com uma estética futurista – o próprio trem bala altamente tecnológico, as menções a personagens característicos da TV japonesa e a iluminação neon.
As referências talvez partam muito mais da visão estereotipada que o mundo ocidental tem do país, mas funcionam dentro dessa lógica de comentar a artificialidade do filme tanto estéticamente quanto textualmente. Além dos elementos visuais já citados, também estão lá recursos como a utilização de letterings em tela, conjugada com uma montagem altamente acelerada e repleta de flashbacks que vão contextualizando cada personagem à medida em aparecem, sempre acompanhados de uma trilha sonora muito presente e repleta de canções pop. O filme é um prato cheio desse cinema moderninho, meio “videoclipezado”, que vem se popularizando e se tornando que lugar comum. Porém, a abordagem aqui funciona porque entra em consonância clara com o texto, que se diverte ao comentar um tema bastante debatido ao longo da história do cinema: as coincidências.
Coincidências não existem no cinema, porque em qualquer filme há uma espécie de divindade que rege todos os acontecimentos: o autor. Dentro desse contexto, podemos entender essa entidade como uma conjugação de roteiro e direção que juntos estabelecem qual história será contada e como será contada. Muitos filmes tentam disfarçar esse fato construindo uma noção clara de causa e consequência que iluda o espectador ao ponto de levá-lo a pensar que os acontecimentos retratados se desenrolaram naturalmente. Outros trabalhos reconhecem e assumem que é tudo fruto do artifício cinematográfico. Que as coincidências mais absurdas podem e devem acontecer simplesmente pela vontade do autor.
“Trem-Bala” trabalha essa ideia ao colocar na boca de seus personagens os conceitos de sorte, azar e destino. Cada uma das peças desse complexo tabuleiro montado por Leitch, pelo roteirista Zak Olkewicz e também por Kôtarô Isaka, autor do livro no qual o filme se baseia, carrega consigo alguma ideia sobre a temática. O protagonista, Joaninha, acredita que é a pessoa “mais azarada do mundo” mesmo que seu azar sempre acabe de alguma maneira o beneficiando em um momento seguinte. Já a personagem de Joey King menciona o filme inteiro ter muita sorte, mesmo que no final das contas isso não se efetive. “Limão” vivido por Brian Tyree Henry pensa que as pessoas podem ser facilmente lidas através dos ensinamentos passados pela série infantil “Thomas e Seus Amigos” e que uma vez classificadas como um dos trenzinhos que protagonizam a animação, seus comportamentos podem ser previstos. “O Ancião” interpretado por Hiroyuki Sanada acredita que o destino colocou em seu caminho a possibilidade de se vingar de uma traição acontecida anos antes. E por fim, o vilão “Morte Branca” (Michael Shannon) se revela o grande arquiteto de toda a trama, mas é traído por uma coincidência imponderável que lhe custa o sucesso do plano.
Dessa forma, o filme justifica sua trama repleta de conveniências com uma ironia bem-humorada que expõe a artificialidade do roteiro e a trabalha com autoconsciência. Os personagens – que diga-se de passagem, são praticamente todos identificados por codinomes – sabem que são apenas joguetes de algo ou alguém, seja esse alguém um mestre do crime disfarçado ou a própria entidade autoral, em última instância. Isso se revela também fora do universo diegético, quando percebemos o efeito gerado a partir da simples escalação de determinados atores – sim Ryan Reynolds, estou falando de você – que extrapolam o filme e carregam toda a bagagem dos intérpretes para os personagens sem que esses precisem sequer ter uma linha de fala, em alguns casos.
Tudo isso é contido à medida em que a entidade autoral consegue também delimitar muito bem o espaço e o destino da jornada dos personagens através da presença do trem que dá título ao longa. Ele funciona como um microcosmos em que esse experimento se desenrola. E olha que interessante: quando o trem enfim chega em seu destino, descobrimos que absolutamente tudo até então fazia parte do plano arquitetado pelo antagonista. Só que a partir daí o veículo continua em movimento, extrapolando a rota predefinida e revelando que na verdade nada estava sob o controle de nenhum dos personagens. Muito menos do espectador. Afinal de contas, o cinema é essa experiência em que todos somos agentes passivos, conduzidos por uma montanha-russa de emoções e efeitos sob o comando dos realizadores. Ponto para o dublê – profissional que tem como função tentar controlar o que é quase incontrolável – David Leitch por nos lembrar disso.
Publicitário que escreve sobre cinema desde 2020. Colabora como crítico no site Cinema com Crítica.
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