Quem diria que roubar o carro de um homem e matar o seu cachorro iniciaria a guerra de proporções homéricas da franquia John Wick. Este 4º capítulo que, no Brasil, ganhou o subtítulo Baba Yaga é a evidência de que o gênero ação está alicerçado no patamar de arte. A ação não é somente um gênero escapista, porém uma forma de expressão a partir dos pilares tiro, bomba e porrada.
Chad Stahelski, o diretor de todos os filmes da franquia e dublê do ator Keanu Reaves, leva a sério a frase a ambição de um homem não deve exceder o seu valor. Ao longo de 4 filmes, aumentou, paulatinamente, as apostas da série e criou toda esta mitologia do mundo de assassinos em que John Wick habita. É um mundo de ordem, com regras e dever de obediência, que sabe empregar cada dólar do orçamento para se fazer real ao espectador. Baba Yaga é o capítulo mais meditativo, dramático, quiçá fúnebre da série até então, sem que isto signifique colocar a ação em segundo plano.
Desde o princípio, a direção evidencia que John Wick está cansado. Ele erra tiros que não teria errado em filmes anteriores. Ele suporta mais golpes no corpo do que havia suportado antes. E ele também contempla o que poderá acontecer após concluir a vingança contra a Cúpula. Só há dois destino para o personagem, matar todos que estão em seu caminho ou morrer uma morte digna.
Baba Yaga posiciona a ação no mesmo patamar da arte clássica. A direção de fotografia de Dan Laustsen abre a imagem em planos abertos ou médios, através dos quais podemos contemplar o árduo trabalho de coreografia com nitidez. É semelhante aos momentos em que o Marquês contempla uma pintura no Museu do Louvre ou que Caine escuta a música clássica tocada pela filha. Ou ainda aos instantes em que o espectador contempla os pontos turísticos das cidades onde a ação é encenada (Nova York, Osaka, Berlim, Paris) ou a criação do designer de produção Kevin Kavanaugh. O olhar do espectador é posicionado no modo contemplar, enquanto a câmera dança ao redor dos personagens, em busca do melhor ângulo para que o esforço físico doado atrás das câmeras não seja desperdiçado em uma decupagem sem sentido.
A decupagem celebra os fãs da ação, não do caos da ação. No lugar de fragmentos colados um do lado do outro, como peças encaixadas à força, ideais articuladas através de disparos e golpes. A narrativa celebra a expressão corporal em ação.
Entretanto, Baba Yaga acolhe a encenação dramática ao lado da beleza artística e violenta. A narrativa explora as relações de pai e filho e de lealdade construídas entre os personagens em um mundo perigoso, porém honrado. Cada um dos personagens têm razões significativas para auxiliar ou caçar John Wick, desde a mais simples (a recompensa) à mais complexa (a proteção de ente querido). Colocadas lado a lado, as relações humanas ajudam a ordenar o mundo de John Wick, dando propósito à ação. (Não que esta precisasse, porém).
Pois a franquia John Wick sempre tratou de ordem, não de caos. A vingança no primeiro filme e a relutância do vilão em lutar de volta, mesmo sabendo que as chances de vitórias seriam mínimas, exercitam o princípio da ordem no cinema de ação. Já os tiros certeiros na cabeça e as lutas coreografadas nos mínimos detalhes são a evidência do assassino que é o melhor no que faz. Por esse motivo que não consigo amar este episódio da mesma forma que os dois anteriores.
No lugar de investir no momento que antecede a ação, e que funciona muito bem como na cena que reúne John, Caine (Donnie Yen), Tracker (Shamier Anderson) e Killa (Scott Adkins irreconhecível em uma roupa prostética), a narrativa acentua pontos fracos que haviam permanecido adormecidos nos anteriores. O emprego do terno a prova de balas de modo exagerado e excessivo só atenua o envolvimento emocional do espectador. Contudo, o fato de a ação acontecer testa a teste, aliado ao recurso protetivo, obriga o espectador a se perguntar da capacidade de os adversários acertarem John Wick mesmo quando próximos.
Para comparar, Parabellum – o meu preferido – preparava e executava a encenação de tal maneira que tínhamos a certeza de que John Wick não era acertado por sorte, em casos raríssimos, mas sobretudo por competência sua. Em contrapartida, Baga Yaga evidencia a incompetência de seus inimigos, incapazes de acertar tiros a um palma de distância.
Isso não acaba com a qualidade e o prazer da obra, mas dilui. Ainda assim, Baba Yaga entende a importância do bom humor como forma de adereço de um mundo tão distanciado do nosso que só podemos sorrir de suas peculiaridades. O elenco, seja antigo, seja novo, mantém a qualidade do universo que apenas ressente um vilão que não o Marquês. Não me entendam mal, Bill Skarsgård faz o possível e o impossível para que o detestemos por 169 minutos, mas a figura de mandante contrasta com a de adversários passados que eram autênticos chefões finais de jogo.
De todo modo, seja este o capítulo final, ou não, da franquia, Baba Yaga comprova que ação é arte. Sempre foi e será. Méritos à direção de Chad Stahelski e o esforço de Keanu Reeves que doaram toques dramáticos para que cada golpe ou disparo tivesse um peso emocional, além da mera contagem de corpos. John Wick 4: Baba Yaga é o que os fãs de cinema – não apenas fãs de cinema de ação – desejam: uma obra madura, eletrizante e consciente dos pontos fortes e fracos, para investir mais nos primeiros em vez dos últimos.
John Wick 4: Baba Yaga está disponível nos cinemas.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
4 comentários em “John Wick 4: Baba Yaga”
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Excelente crítica. Vi ontem no cinema e compartilho da sua opinião. Vale muito o tempo da sessão pela trama, emoções envolvidas, imagens, humor (até pelos exageros) e a dedicação à obra extensa e detalhada. Realmente senti certo desprazer em cenas com adversários tão errantes e talvez até com certa lentidão na ação. Mas uau! Senti de tudo um pouco ao me entregar à tela.
Não vi o filme, infelizmente, principalmente que adoro o personagem desde o primeiro filme. A critica é perfeita, destacando comparações com as outros filmes, o que acho importante, muitas sequências de filmes não atendem as anteriores, o que podemos ver em outras obras que se perdem na base da obra. Me desculpe a opinião, mas entendo que os exageros, nesse gênero de filne de ação dãoum certo charme ao filme.
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