“Pior do que não terminar uma viagem é nunca partir.” – Amyr Klink
Em “Nada Sobre Meu Pai”, acompanhamos a cineasta Susanna Lira em sua jornada a Quito, em busca de respostas sobre a identidade e o paradeiro de seu pai. Com informações fragmentadas e memórias “fabricadas”, a diretora tenta remontar o quebra cabeça de sua árvore genealógica, recorrendo a órgãos e instituições públicas, à mídia e também entrevistando possíveis genitores.
É, no mínimo, curioso perceber a quantidade de camadas que o documentário possui. Um documentário pode funcionar como o registro da memória de um país. Susanna está documentando sua jornada em busca de uma memória nunca registrada. Seu pai era um jovem militante de esquerda equatoriano e veio ao Brasil para combater a ditadura. Seu nome, Hélio Francisco de Castro, um possível pseudônimo. Nenhuma fotografia, nenhuma filmagem. Nenhum registro de seu rosto. Ao tentar resgatar sua história, a realizadora reconta também um pedaço lúgubre da história do Equador – “um país de pintores, mas agreste para o cinema”.
Ao longo do filme, é possível enxergar que, apesar das dúvidas e questionamentos, a diretora não se mostra uma pessoa erodida. É possível encontrar muito amor em memórias desenhadas por sua mãe. Até mesmo em lugares onde caberia apenas um enorme vazio. Foi compartilhado com Susanna diversas lembranças em um apartamento no edifício “Balança, mas não cai” por uma mulher igualmente inabalável. Tudo para que sua filha conseguisse um vislumbre imaginário de quem é esse homem. Se o nome de seu pai sugere uma miragem, o de sua mãe invoca um deslumbre. É até mesmo a partir da fotografia de sua mãe que a procura se inicia.
Entre imagens desfocadas e planos fechados, compartilhamos um pouco do anseio da cineasta por possuir tantas perguntas e tão poucas respostas. Acompanhamos sua ida às instituições públicas do Equador e seu retorno apenas com vestígios pueris. Vemos sua dor ser escancarada em um programa de televisão local como um grande espetáculo. Seguimos seus passos pelas ruas de Quito e sentimos sua angústia, enquanto somos embalados pelo som de violeiros na calçada ou pelo arranjo sensível da trilha extradiegética. Nos emocionamos ao ver seu esgotamento e somos surpreendidos pela vontade de invadir a tela para tentar reconfortá-la e insistir que não desista.
A cada encontro com um possível progenitor e seus familiares, um brilho de esperança centelha. É cativante conhecer um pouco da história de cada um daqueles senhores. Passados de lutas e amores são compartilhados e um laço de afeto costura nossa viajante aqueles personagens. Os rostos envelhecidos alternam-se entre imagens do período da ditadura de Ibarra. Também descobrimos semelhanças entre cada um daqueles homens e Susanna. O que começa em tons de cinza, vai ganhando cores enquanto a paternidade preenche aqueles cômodos e acolhe os envolvidos como em um grande abraço.
“Pai”. Uma escrita minúscula. Apenas três letras formando uma única sílaba. Tão gigante em complexidade. Tão rica em significados. Para alguns, amor. Para outros, dor. Para tantos, saudade. Para tantos e tantos, apenas vazio. Às vezes só um nome. Às vezes, nem isso. Eu tenho a sorte de conhecer o nome e de conviver com o rosto ligado a ela. Eu tenho o mesmo nome do meu herói. Que sorte imensa eu tenho! Te amo, pai!
Nada Sobre Meu Pai consegue nos entregar tudo sobre Susanna. Não há como sair da exibição e não se sentir, de alguma maneira, próximo da realizadora da obra. Se dessa viagem, Susanna retornou uma pessoa diferente da que partiu, nós, enquanto espectadores dessa jornada, também saímos modificados. Ao fim, o sentimento é o de leveza. Unindo dois países latino-americanos através de sua história, a cineasta compartilhou momentos tão íntimos enquanto fez cinema.
Nada Sobre Meu Pai está sendo exibido nos cinemas, no É Tudo Verdade 2023 – 28º Festival Internacional de Documentários.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.
7 comentários em “Nada Sobre Meu Pai”
Texto emocionante! Destacando, como sempre, os pontos marcantes da obra. O artigo evidencia a sensibilidade da cineasta na reprodução de sua obra.
Não posso deixar de agradecer às suas palavras carinhosas. Saiba que sou seu fã desde que você nasceu.
Obrigado pelo apoio e carinho, pai! Sempre!
Arrepiada aqui com cada palavra escrita por você!!! muito obrigada pela sensibilidade e olhar tão apurado!
Muito obrigado pela visita e pelo feedback, Susanna! É uma honra ter a presença da realizadora do filme aqui nos comentários do meu texto!
Pingback: Como foi cobrir eu primeiro festival de cinema presencial, em Vassouras • Cinema com Crítica
Ontem , aqui em BH foi algo inefável
A susana tem uma sutileza em tratar assuntos particulares de forma única. A senseção final é de que a família Lira está aumentando por onde há exibição.
Pingback: Entrevista Susanna Lira - Cine BH 2023 • Cinema com Crítica