Quando Anatomie d’une chute – ou Anatomia de uma Queda, em português – tem início, a escritora Sandra (a alemã Sandra Hüller) oferece uma entrevista em sua residência no alpe de Grenoble. É nítido o modo como Sandra sequestra a entrevista, manipulando a intenção da entrevistadora de uma forma passivo-agressiva. Isto antes de Samuel (Samuel Theis), o marido de Sandra, intervir sabotando a entrevista aumentando o volume musical que escuta no andar superior. Ao término da entrevista, o filho do casal, Daniel (Milo Machado-Graner), deficiente visual, sai para passear com o cachorro e, ao retornar, encontra o cadáver do pai. Teria Sandra golpeado-o em direção à morte ou teria Samuel cometido suicídio?
Seguindo a tradição dos thrillers e dramas de julgamentos, a narrativa é desenvolvida em etapas, até culminar no veredito do júri de inocente ou culpado. Apesar da forma previsível, Anatomie d’une chute é favorecido com o metodismo da diretora e co-roteirista Justine Triet (de Sybil e Na Cama com Victoria), que torna crível a etapa investigativa, o relacionamento com a equipe de advogados encabeçada por Samuel (Swann Arlaud) e o procedimento em si. Contudo, antes de eu me aprofundar, chamou-me a atenção o tanto de vezes que anotei a palavra manipuladora ao lado de certo evento. É uma evidência do impacto da cena inicial e de como essa orientou meu olhar durante a narrativa, tal como costuma acontecer com a opinião pública em casos de grande repercussão.
Há motivos para qualquer veredito, e a promotoria agarra-se à gravação feita por Samuel na véspera da morte, em que o casal briga e, ao que parece, vai às vias de fato. Já a defesa apoia-se na tese de que Samuel era depressivo, incapaz de lidar com o sucesso da esposa e cometeu o suicídio. É uma dúvida que não há quando a bola de tênis quica escada abaixo no plano-detalhe que dá início à narrativa.
O barato de filmes iguais a este é que, no melhor dos mundos, embora jamais alcancemos a verdade dos fatos, podemos repousar confortáveis com a verdade que formulamos se os elementos narrativos estiverem no ponto certo. Desde quando a juíza do caso avalia e autoriza a fiança de Sandra, e a diretora ilustra o ato burocrático com que aquela assina os cheques parceladamente, você reconhece estar diante de uma obra verossímil e detalhista preocupada tanto com o procedimento quanto com a encenação dramática. A reconstituição do crime e o momento em que Daniel convence a juíza a autorizá-lo a permanecer durante o julgamento – caso não o faça, Daniel ameaça descobrir por outros meios o que acontecerá – apenas reforçam o esforço dedicado no roteiro por Justine Triet e Arthur Harari.
Isso não vem ao custo da narrativa, mas a serviço dela. Durante o julgamento, o registro do áudio é reconstituído por Justine Triet e somos transportados para o dia anterior à morte de Samuel. A imagem a que assistimos associada ao áudio gravado confere a materialidade ao registro, e não questionamos sua factualidade. Até o momento em que Justine retorna ao tempo presente no julgamento, no trecho que a promotoria defende ter havido agressão física e a defesa sustenta ter sido ‘somente’ a quebra de um copo e golpes desferidos por Samuel em si mesmo ou contra a parede, pois agora não há factualidade, só o duelo entre versões, deixando ao alvedrio do espectador decidir em quem acredita.
É irônico, portanto, que Sandra oriente Daniel a “contar exatamente o que lembra”, em face à memória cheia de lacunas e a limitação visual – é uma pista de que Daniel não é confiável em termos de testemunho ou, do contrário, que é ainda mais sensível à verdade? Neste cenário, Sandra Hüller oferece uma atuação arrebatadora, pois não age como a boa esposa falsamente acusada, mas como a suspeita número um e que sabe que o destino dela está em risco. Confesso, não tenho convicção quanto à inocência ou à culpa (felizmente não sou júri). A atuação da atriz parece dotar a personagem com o poder de vergir as pessoas à sua verdade; foi nisto que acreditei nos depoimentos dramáticos e sentimentais. Não é similar à Catherine Tramell de Instinto Selvagem, mas é perto da ideia de que estamos sobre o muro e a lágrima que julgamos ser real, na realidade ser de crocodilo (ou vice-versa).
Inteligentemente, o roteiro evita espetacularizar o julgamento além do que os advogados já fazem habitualmente, e ainda se revela apto em resolver a narrativa, de um modo poético. A verdade em Anatomie d’une chute permanece elusiva, mesmo que o julgamento atinga um termo satisfatório, uma vez que o testemunho decisivo é modelado pela memória, e não por fatos. Se cremos em algo é na certeza de termos assistido a uma obra paradigmática dentro de um subgênero repleto de clássicos.
Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.