Quando assisti a Black Flies, meu quinto filme em um dia corrido, peguei a sessão de 22:45 (até 00:45). Havia cogitado desistir e reprogramar para outro dia, porém a falta de sessões adicionais em horários compatíveis exigiu-me esse sacrifício. É que, a despeito de mérito ou demérito da direção de Jean-Stéphane Sauvaire, a narrativa é uma metralhadora giratória de estímulos audiovisuais que só cessa ao término da excruciante jornada do protagonista, Cross (ou cruz, na tradução).
É um nome sugestivo, porque a sensação é de que a profissão de socorrista é o fardo que o novato Cross (Tye Sheridan) deve carregar até a chance de realizar o exame admissional para o curso de medicina, o equivalente à redenção. Rutkovsky (Sean Penn, cujas linhas de expressão confere expressividade ao personagem sem que este precise dizer uma palavra) é o veterano e mentor nos plantões noturnos, de um jeito bem Dia de Treinamento de ser, revelando as coisas como elas são e tirando a maquiagem idealizada que Cross imaginava.
O roteiro de Ryan King e Ben Mac é um estudo de personagem de Cross, cuja bondade é desafiada a cada incidente que penetra sob sua pele e corrói as intenções que norteiam o seu trabalho. Enquanto isto, é o cartão postal ao avesso da cidade de Nova York, revelado à noite da pior forma possível. Desde a cena inicial, em que o socorrista vivido por Michael Pitt grita “Não somos policiais” em um bairro negro, pode-se realizar o argumento de que a narrativa é racista e xenofóbica (não estou afirmando que seja).
Indícios não faltam: os socorristas que mais participam da narrativa são homens brancos – ainda que a figura do diretor seja negra, em papel ironicamente interpretado por Mike Tyson – e os casos atendidos incluem ferimentos a tiro, overdose, violência doméstica e pacientes que rejeitam a assistência em razão da fé professada. Até onde a narrativa é indicadora da problemática social na metrópole ou somente o reforço dela é o que o espectador deve se questionar.
Seja como for, a trajetória massacrante de Cross é reforçada na forma narrativa que, igual afirmei no parágrafo introdutório, não apenas me manteve desperto, mas principiou causar uma enxaqueca. A trilha sonora de Nicolas Becker e Quentin Sirjacq combina o sagrado (a música erudita) com o profano (a música eletrônica, o rock ‘n roll), em decibéis altíssimos ao lado da edição sonora de Ken Yasumoto, que potencializa o som das sirenes, o tick tack do relógio ou o barulho das moscas, que ganham um significado de indicar a proximidade da morte. Isto é realçado pela fotografia de David Ungaro, que pincela a noite escura de Nova York com o borrão vermelho das sirenes e confere, à imagem, o análogo à putrefação.
Já Tye Sheridan é eficiente em obedecer o clichê de obras análogas em que o personagem é submetido à pressão e ao estresse e eventualmente sucumbe a estes, ao mesmo tempo em que confere um sorriso doce, ainda que envergonhado, quando é notificado a atender um parto (a expectativa de servir a vida, em vez de apenas remediar ou postergar a morte, é reconfortante). Do mesmo modo sutil, Tye revela a desconfiança do trabalho de Rutkovsky ainda que se mantenha leal ao parceiro. E, mesmo que goste da atuação de Sean Penn, a figura paterna que Cross não teve, não dá para relevar a mancada do roteiro em obrigá-lo a confessar determinada ação, retirando a interrogação que poderia ser deixada ao debate.
Aliás, o terceiro ato da narrativa é incrivelmente problemático. O emprego excessivo de simbolismos, ainda por cima elementares, retira o realismo a que a narrativa se agarrava em favor do utilitarismo cinematográfico em que tudo deve ter um significado. A jaqueta com as asas de anjo, o quadro de São Jorge matando um dragão, a camisa de uma personagem com um dragão estampado e o incêndio – ou o inferno – formam a equação desinteressante de signos que estende o terceiro ato, criando um final atrás do outro, apesar de nenhum deles recompensar o espectador.
Mal recebido pela crítica no Festival de Cannes, por recorrer a excessos que fragilizam a força óbvia da narrativa, Black Flies é ainda assim um estudo de personagem interessante e bem atuado, ainda que falho e moralmente confuso.
Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.