Antes do cinema ser uma arte predominantemente narrativa, atravessou um momento de formação em que decidiu qual deveria ser sua identidade e função. O cinema como meio de registro, baseado na preservação de imagens para fins históricos e familiares, e antecessor do cinema especializado em contar histórias, é uma de tantas funções do cinematógrafo e de seus herdeiros. É a função explorada no documentário Occupied City.
Com base na pesquisa da esposa Barbara Stigter e compilada no livro Atlas of an Occupied City: Amsterdam 1940-1945, o vencedor do Oscar Steve McQueen (12 Anos de Escravidão e Small Axe) formatou, no filme-ensaio, os traços deixados pela 2ª Guerra Mundial durante a ocupação nazista na Holanda, onde mora há mais de 27 anos. Durante a apresentação da obra, McQueen afirmou existirem histórias na porta de casa que precisam ser contadas.
Ao longo de 4 horas e 22 minutos, a narradora Melanie Hyams recorda endereços, pontos turísticos, famílias e indivíduos marcados pelo conflito, porém esquecidos na vida cotidiana atribulada. O distanciamento histórico do regime nazista, hoje mais de 75 anos, cria um vão explorado pelo negacionismo e acolhedor do resgate empreendido pela direção. A narração de Melanie é compassada, não fria; subtrai emoções em favor de fatos, datas e eventos, sem que isto distancie o narrador do espectador; é sintética o bastante para que o texto seja absorvido e não flutue na memória de quem termina o relato e esquece o início.
Desse modo, lembra bastante o filme-ensaio do cineasta romeno Radu Jude The Exit of the Trains, que lembrava os romenos judeus assassinados no regime nazista. Mas, ao invés de apenas a narração com o mínimo de apoio audiovisual, McQueen transforma o narrado com o apelo à imagem contemporânea.
Afora o contraste óbvio entre o ontem e o hoje, associada aos áudios, as imagens parecem formar um imaginário próprio na cabeça do espectador. Em certo momento, o diretor lembra do segregacionismo do ensino infantil entre judeus e não judeus. As imagens, por sua vez, mostram crianças brincando de bingo e uma criança parda, em primeiro plano. Estaria a direção argumentando que o segregacionismo permanece, embora em formato socialmente aceito?
Noutros momentos, a câmera está presa a momento prosaicos do dia-a-dia: a filha de uma sobrevivente do holocausto dança dentro de casa, as pessoas estão nadando no cais e nas piscinas públicas, dois homens cantam Bob Marley. O país respira na ação destas pessoas que exploram os espaços públicos ou privados, em que judeus permaneciam presos ou em que o regime nazista articulava serviços de manutenção do regime de exceção.
Ora as imagens acompanhantes são literais, com o intento de reforçar o que poderíamos ter perdido caso o regime nazista houvesse ganhado – quando recorda as jovens sequestradas por nazistas, o diretor registra o treinamento em uma escola de balé para mulheres; quando menciona as crianças presas, os alunos de uma creche aparecem na imagem. Ou então, as imagens dispensam a interpretação, acolhem apenas o sentir, a exemplo dos planos aéreos de drones que realizam piruetas nas cidades desérticas da Holanda.
É que, além de registrar o ontem a partir do olhar contemporâneo, Occupied City também é hábil em ser retrato deste tempo: a epidemia do Covid-19, a manifestação em favor do meio ambiente e contra as corporações que ajudam a mudança climática, a pulsação da cidade que adotou como lar e com cuja história e sociedade dedica 282 minutos.
Aí é onde o ensaio perdeu-me. Apesar de a duração revelar a importância de cada uma das histórias narradas, por mais simples que pareçam ser no jogo das coisas, a narrativa cansa. Mesmo que a essência de Occupied City seja tangível, perdem-se rimas da poesia em prol da exaustão e do cansaço intelectual de absorver a história, dar significado às imagens e sentir a potência do que oferecem.
Não é nem o caso de afirmar “ah, se fosse menor”, pois o documentário tem a duração que deve ter para honrar a vida e a memória do país e do povo judeu e não judeu simpatizante. É apenas que o monopólio do cinema narrativa acabou por marginalizar obras que revelam funções nobres do cinema, e que demanda paciência de muitos que perderam a habilidade de comprometimento além de um intervalo curto de tempo.
Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.