Já é o quarto filme que vejo do singapurense Anthony Chen (Ilo Ilo e do inédito Drift) em que sinto o afeto do diretor pelos personagens, embora eu falhe ao atravessar a membrana que separa o ato de pensar do ato de sentir. Embora seja inegável que haja o elemento emocional na base da obra do diretor, apenas não consigo alcançá-lo, numa relação que é bem análoga à minha com o cinema de Hirokazu Kore-eda (de quem Anthony Chen muito certamente drena inspiração).
The Breaking Ice é o triângulo afetivo, mas não amoroso, entre jovens adultos que habitam no norte frio da China. No casamento em que somos apresentados a Haofeng (Liu Haoran), ele está sentado a sós antes de caminhar em direção ao lado de fora e contemplar a queda. Por acaso, Haofeng conhece a guia turística Nana (Dongyu Zhou), frustrada em razão do acidente que abreviou a carreira na patinação artística. O trio é completado por Xiao (Chuxiao Qu), que trabalha em uma cozinha enquanto tenta encontrar o sentido da vida.
Simbolicamente, The Breaking Ice é até óbvio em associar o frio castigante do norte chinês à insensibilidade de personagens, que buscam alguma forma de calor na amizade que forjam. Por exemplo, Haofeng habituou-se a mastigar pedaços de gelo para sentir qualquer coisa, nem que a dor do frio no interior da boca, num gesto masoquista e de autoflagelação. Contudo, a cena inicial, que documenta a operação industrial que extrai blocos de gelo com precisão, é reveladora de que há algo positivo a ser extraído do frio e que este não precisa estar associado a significados imediatos.
Anthony Chen também é direto em expressar o que atormenta os personagens, visual ou ideologicamente. Nana alucina visualmente com o ringue de patinação, que é o que lhe deu propósito na vida, e cuja memória está na forma de uma cicatriz no pé. Já Xiao, ao encarar o cartaz de recompensa na parede, questiona-se do próprio valor em comparação com a recompensa. No meio disso, há a parábola do urso e tigre, encenada na narrativa de forma literal, e a essência do drama de estrada, em que a caminhada é mais importante do que o destino – o trio, ao escalar uma montanha, deve decidir entre continuar até o topo, embora o risco de avalanche, ou em aceitar o momento que tiveram juntos na subida.
Eu tenho criado maior apreço por obras que não me exigem a racionalização em teorizar ou metaforizar este ou aquele símbolo para ter uma experiência satisfatória, mas The Breaking Ice está no espectro oposto, na forma em que a exposição não é sinônimo de recompensa emocional. Quando Chen recorre ao trio de atores ou à câmera que registra sua intimidade, ou sua frustração em não participar de um momento afetivo, o resultado é satisfatório, pois não força atalho ao coração do espectador. A emoção é genuína, e é facílimo dialogar com a autenticidade quando são debatidos o sentido da vida ou o amor.
Perceba a beleza contida na cena do chuveiro, que media o toque afetuoso com o emprego da cortina e escancara o tormento, compartilhado pelos personagens, em se expor pelo que são. É um momento que conversa com meu sentimento em relação ao filme: pois, embora bela e poética a cena, é indício de que Anthony Chen prefere patinar ao redor de emoções do que as encarar de frente, mesmo quando a opção final seja a estrada mais acessível aos personagens.
“Você é um turista ou amigo?”, questiona um personagem. Ao fim, a percepção é de que Anthony Chen opta pela primeira opção em detrimento da segunda. Um turista em viagem de férias pela vida dos outros, antes de retornar ao seu mundo, e não um amigo que deseja expressar e viver as dores daqueles com os quais partilha a viagem.
Crítica publicada durante a Cobertura do Festival de Cannes 2023.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.