Rudolf Höss (não confundir com Rudolf Hëss) foi um dos oficiais nazistas responsáveis pelos campos de concentração de Auschwitz, na Polônia, onde aproximadamente um milhão de judeus e presos de guerra foram assassinados. Portanto, é coerente que Zona de Interesse tenha início com o título do filme lentamente apagando-se diante de um fundo preto, ao som de uma trilha sonora arcana e desconfortável. É uma espécie de minuto de silêncio – ou minutos de silêncio – que estabelece o tom da narrativa dirigida por Jonathan Glazer (do terror sci-fi Sob a Pele, seu longa-metragem anterior, há exata uma década).
O enredo escrito por Glazer, baseado no livro de Martin Amis, é ambientado na Polônia, na residência aprazível onde Höss (Christian Friedel) e a esposa Hedwig (Sandra Hüeller) moram com os filhos. Os sons dos pássaros, o cenário bucólico e o clima de verão mal dão a dimensão dos crimes contra a humanidade cometidos além do muro da residência envelopado com arame farpado. A fumaça do crematório e os gritos desesperados são o máximo que o espectador se aproxima da materialidade do terror do holocausto, pois Glazer esmera-se na abordagem distanciada, do terror e também da família.
Caçando na memória (mas posso estar errado), não lembro de nenhum plano narrativo que não seja um plano médio ou longo, mantendo-nos à distância. Somos meros observadores, assistindo à dinâmica daquele microcosmos com a mesma curiosidade que teríamos caso fossem alienígenas, enquanto sentimos o peso dos assassinatos em massa. É a banalidade do mal levada a efeito no retrato normalizado de uma família, que age como agiria qualquer outra família: os filhos brincam e brigam, a mãe de Hedwig a visita, os pais conversam e discutem. Noutras palavras, Glazer revela que famílias nazistas são iguais a qualquer outra, ao mesmo tempo em que media a relação do espectador pela distância, evitando qualquer envolvimento emocional que poderia ser atingido, até inadvertidamente, com closes.
Essa normalização é assustadora durante a reunião da cúpula de oficiais, em que estes discutem a quantidade de lotes (de judeus) que podem ser cremados (“entre 400 e 500”), da mesma maneira como se fossem homens de negócios discutindo sua operação. A morte é uma métrica de produtividade para avaliação do Führer. Não há nenhum disparo, nenhuma morte, a não ser fora de campo e no ângulo da sugestão. Paradoxalmente, Zona de Interesse é como se este fosse um dos mais violentos filmes de guerra em razão da desumanização e objetificação do indivíduo, e a negativa de Jonathan Glazer, judeu, caminha a este encontro, pois para que mostrar as vítimas se não poderão realizar nada para fugir da imolação?
A maldade nazista também contamina o ambiente domiciliar e, pouco a pouco, percebemos quã frágeis são as relações entre os membros ou entre estes e os serventes da casa (a empregada judia é alvo da frustração de Hedwig, durante um evento festivo). É o contrário do jardim, imageticamente belo nos planos-detalhe fotografados por Lukasz Zal (indicado ao Oscar por Ida e Guerra Fria) e modelado pelo horror importado pela edição sonora. Como o belo pode conviver com o horror, pergunto-me, ou como a humanidade pode conviver com a maldade extrema. A implicação artística dessa reflexão me intriga, pois assim como sugere que a maldade é parte da identidade humana, evidencia que o horror pode ser belo.
A exemplo da sequência em preto e branco da filha do casal, um negativo ou uma negação alienante do mal ao redor, ou do enquadramento diagonal, utilizando lentes angulares, que deformam a normalidade do cotidiano familiar. Assim, o que torna Zona de Interesse uma obra fascinante é o quanto o formalismo narrativo – até maior do que Sob a Pele, relevante dizer – é uma abordagem coerente com a frieza nazista. A decisão de dessensibilizar certos aspectos ou de excluir elementos comuns ao drama de guerra provoca o efeito de a indiferença nazista, em vez do ódio, produto de uma política de propaganda massacrante e desumanizante.
Zone of Interest realiza o exato oposto ao feito pelo Museu de Auschwitz, que recupera a humanidade arrancada das vítimas através de itens de vestuário (sapatos ou uniformes, por exemplo) e da exaltação e preservação da memória dos que partiram prematuramente. Já a extraordinária obra de Jonathan Glazer objetifica o que existe em comum entre todos nós, a relação familiar, e com isto banaliza o horror que pode conviver em cada um.
Crítica publicada durante a cobertura do Festival de Cannes 2023
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.