A repetitividade da obra de Hong Sang-soo, a repetitividade de estilo, tema, artistas e ânsias, é o que a torna acolhedora. Não um conforto sem retorno, porém um que busca, no simples, uma filosofia particular do criador. A consciência de que haverá um momento em que os personagens derrubarão uma meia dúzia de garrafas de Soju (um destilado à base de soja típico da Coreia do Sul). Ou a limitação do espaço, a alternativa para instigar uma criatividade específica e buscar as oportunidades de encenação habitualmente ignoradas em prol de um cinema espetáculo (o momento em que Sang-won alimenta um gato gordo, diante do espelho, é de uma comicidade adorável).
In Our Days retoma o tema central da obra de Hong Sang-soo: o papel do artista, do poeta ou da atriz, diante do sentido da vida e do conceito de amor. A atriz-fetiche do diretor, Kim Min-hee, interpreta Sang-won, uma atriz aposentada que aconselha a atriz aspirante Ji-soo (Park Mi-so), no apartamento de Jung-soo (Song Sun-mi). Concomitantemente, apesar de não haver relação temporal ou causal aparente, a documentarista Ki-joo (Kim Seung-yun) entrevista o pai adotivo e poeta Hong (Ki Joo-bong) e recebe a vista do ator também aspirante Jae-won (Ha Seong-guk).
As tramas desenvolvem-se independentemente, embora namorem a proximidade sugerida mas não desenvolvida, além da menção à (possível) relação entre Hong e Sang-won ou da presença do molho de pimenta. Essa associação é ainda construída em termos de enredo: a presença de personagens que desejam ser atores, munidos de presentes aos anfitriões, ou mesmo os instantes em que os personagens deixam o ambiente interno do apartamento em direção ao ambiente externo são espelhados para instigar algo no espectador, mesmo que este algo não se materialize em forma de cinema.
A racionalidade impele-me a procurar elos entre ambas as histórias, estilísticos e temáticos. Contudo, será que, ao adotar este ponto de vista pragmático, não estou perdendo o que há de melhor: a beleza da coincidência? Pois é certo que, neste momento, pode haver alguém ruminando as mesmas coisas que estou ruminando, não em relação a este filme específico, mas algo que promova esta casualidade fraquíssima que o cérebro humano tenta domar em algo maior do que é. É parecido com o comportamento do espectador que modela a arte de acordo com o que deseja (talvez eu até esteja fazendo isso agora), em vez de só apreciar a beleza do momento que proporciona.
Hong Sang-soo não é tolo ao elaborar dramas mínimos e possíveis da vida real, costurados com o bom humor que lhe vem naturalmente. É que filmes ajudam-lhe a preencher o tempo e retardam a ansiedade de refletir sobre a iminência da morte, uma sensação compartilhada com o que o poeta expressa. Se In Our Day ou cada trabalho da carreira de Hong Sang-soo tem algo a ensinar é a capacidade de apreciar as brisas da vida, de modo descomplicado. É o Soju ou o vinho, o cigarro, a conversa ou mesmo jogar pedra, papel e tesoura, momento ímpar e divertidíssimo da carreira do prolífico autor.
Hong Sang-soo é o cinema em que gatos desaparecidos retornam ao lar, em um confortável abraço proporcionado pelo cineasta para atenuar as ansiedades cotidianas na linguagem da simplicidade.
Leia mais sobre a obra de Hong Sang-soo em The Novelist’s Film, A Mulher que Fugiu e A Câmera de Claire.
Crítica publicada para a cobertura do Festival de Cannes 2023.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.