Como curar a dor que está enraizada na memória? É no jardim de sua casa que Celsa Ramirez Rodas, encontra o remédio para as mazelas físicas e emocionais que possui. Cada planta, semente ou raiz, vindas das várias espécies que cultiva em seu jardim, vai se converter em iuius, misturas de ervas medicinais. A idosa narra como utiliza dessa medicina ancestral para tratar as sequelas em seu corpo deixadas pela tortura que sofreu durante a ditadura no Paraguai. Conta também como a medicina moderna não foi capaz de curar as dores em suas mãos, enquanto prepara seu tereré.
A ditadura paraguaia foi a mais longa na América do Sul e Celsa viveu os dias mais dolorosos de sua existência no campo de concentração de Emboscada. Seu filho, inclusive, nasceu dentro do cárcere. Algumas de suas roupas de bebê, usadas no campo, são exibidas. Mas o pouco refúgio do horror era sob a copa do Guapo’Y, uma árvore que se localizava no terreno do campo e que acolhia os prisioneiros nos momentos de comunhão e troca. Celsa rememora a sobrevivência em família e o sofrimento que passou ao longo daqueles anos. Dos nove dias com a mesma roupa, privada de se banhar. Das diversas torturas que deformaram suas mãos e marcaram seu espírito. Dos amigos que não resistiram. Do marido que não está mais presente.
Guapo’Y revive esse momento obscuro e faz transbordar a dor de uma ferida que nunca se curou. É possível sentir a tristeza nas palavras da senhora. E quando a imagem é preenchida pelo silêncio, o assombro está no revisitar fotos antigas, recolhida ao canto do quadro em um quarto tomado pelas sombras da noite. A mais amargas das ervas não se compara ao fel de um trauma. Ainda assim, o documentário é sensível ao não recriar as imagens daquele tempo. A construção visual fica não encargo do imaginário do espectador. A diretora opta por imagens cuja poesia consegue entregar o pesar, como na abertura do filme, em que a senhora prende com fita adesiva raízes de plantas às suas costas em uma fotografia que remonta às cicatrizes.
O encarceramento também é sentido através da imagem. Em alguns trechos do depoimento, percebemos a protagonista coberta pelas sombras das grades. Essas mesmas grades estão presentes como pano de fundo para a reprodução das gravações de depoimentos do General Alfredo Stroessner, ditador do Paraguai entre 1959 e 1989. Ainda que essas sejam as grades da casa de Celsa, sua moradia não possui o peso do cárcere. O pouco espaço do imóvel rodeado de plantas e conservas não é hostil. Pelo contrário. Existe um frescor no ambiente, evidenciado pela relação da militante com suas plantas.
Apesar do filme receber o nome de uma árvore, outro elemento me chama atenção: as mãos. Elas ocupam o quadro na maior parte do filme. Ainda que majoritariamente sejam as mãos de Celsa, colhendo, manipulando as ervas, escrevendo ou, simplesmente, gesticulando, outras mãos invadem a cena com a mesma amabilidade: as de sua filha tocando harpa ou de seu filho a consolando. O movimento das mãos dentro da obra é poético e, ao mesmo tempo, hipnótico. Em alguns momentos, Guapo’Y me faz rememorar Os Catadores e Eu, de Agnès Varda. Quando Celsa trata de suas ervas, comentando sua utilidade, é quase como um passo-a-passo que conquista nossa atenção. É incrível perceber que essas mesmas mãos que colhem foram curadas por essas ervas que foram colhidas. Um ciclo de cura.
Guapo’Y traz a memória de um tempo sombrio na história paraguaia. Não deixar cair em esquecimento é também impedir que esses tempos sejam revividos. Ainda mais quando o atual presidente é simpático ao regime ditatorial de Stroessner, afirmando em entrevista à Folha de São Paulo, inclusive, que resultou em “50 anos de estabilidade no Paraguai”. Apesar de toda a dor revisitada, Guapo’Y é um filme sobre afeto e, principalmente, sobre cura. Sofía Paoli Thorne, apesar de estreante, teve sensibilidade ao ressignificar símbolos: os cômodos fechados da casa de Celsa trazem alívio e suas mãos, transformam uma ferramenta capaz de golpear e torturar em uma ferramenta de cura.
Guapo’Y foi exibido na Mostra Território, do 17 Festival Internacional de Cinema Cine BH.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.