O Estranho traz um questionamento a respeito de transitoriedade e permanência. No vai e vem de milhares de passageiros no Aeroporto Internacional de Guarulhos, nos deparamos com figuras que dentro daquele espaço geográfico permanecem: os funcionários. Mais que engrenagens naquela intensa operação de ir e vir, eles são como elos com o passado. Seus rostos se repetem na representação de diferentes épocas sob os anos 1932, 1893, 1677 e 1492. Mostrando que, por muito tempo, o espaço se manteve intocável.
Alê, a funcionária que protagoniza a narrativa, vê como pequenos tesouros as folhas e pedras que recolhe e encontra nas malas que trafegam nos bagageiros. Entre seus espólios, se encontra a mesma pedra castanho avermelhada que aparecera no ano de 1492. Na época, em posse da figura originária que compartilha do mesmo rosto da protagonista. A forma com que Alê reúne esses achados é artisticamente peculiar. Consegue ser caótico e belo. É como se tivesse tentando remontar o espaço natural que não mais existe, mas em uma menor escala. É como se buscasse a configuração ideal numa memória que transcende seu tempo.
A protagonista é uma figura anacrônica dentro da narrativa. Seu sentimento de não pertencimento é efervescente. Desde a brincadeira com sua namorada à forma melancólica como se desloca são pequenos indícios da sua busca, que não é necessariamente por outro espaço, mas por outro tempo. Ela se compara aos sambaquis, que por muito tempo estiveram naquela região, mas desapareceram. Da mesma maneira também desapareceram seus iguais: sua mãe morrera faz um ano e sua irmã desapareceu no aeroporto anos atrás, quando tinha apenas dezessete anos. Aquilo que tinha ali, não tem mais.
Assim como Alê, o cenário também é um personagem dentro da narrativa. O aeroporto, enquanto rolo compressor da modernidade, é o algoz da natureza que ali havia. Sua inauguração exigiu a descaracterização da reserva que ali existia. Outrora, no ambiente de mata que preenchia aquele espaço, coexistiam fauna, flora, aldeias indígenas e vilarejos. Mas os moradores originários foram desalojados. As trilhas se converteram em estradas. E o som dos pássaros deu lugar ao som das turbinas.
O filme também usa a voz de Alê para gritar sua crítica a essa modernidade destrutiva, que não respeita mais a terra. Que busca a todo custo apagar a história dos que lá passaram. A impermanência é a nova regra em um cenário onde criar raízes não é mais uma possibilidade. Na contramão dessa lógica, Alê quer retornar à terra. Deseja ser enterrada junto a seus antepassados. Fala do ritual de cremação em Varanasi, índia, em que os corpos retornam ao Ganges. Discursa sobre agradecer por ser quem é e por estar onde está; uma ode à permanência. E finaliza com a sabedoria das águas dos rios que já nascem sabendo seu destino e, por isso, correm em direção ao mar.
Ainda sobre as águas, elas estão presentes desde o início da narrativa. A primeira imagem do filme é a de pequenos filetes de água escorrendo em torno de limos. É como se estivesse ligada à vida, alimentando a tudo e a todos. Inclusive, durante uma trilha no que resta da região de mata da reserva, o grupo de funcionários se esbarra com uma gruta e percebem que essa é uma formação não-natural, construída para transportar a água. Até o menor detalhe é resultado da intervenção. A mutabilidade se manifesta em prol da transitoriedade, do novo que um dia vai se converter em moderno. Inclusive, a imagem da mata é diluída em uma transição que aos poucos revela o espaço do aeroporto. E, como resistência, o som dos passarinhos sobressai ao das turbinas.
A figura da mulher indígena que aparece e desaparece em meio a trilha, quase que de maneira sobrenatural, ressurge em campo agora para contar sua história, sua identidade e reivindicar seu reconhecimento naquele espaço. Outras mulheres indígenas também trazem seu testemunho, juntando-se ao coro dos passarinhos. Elas falam sobre a necessidade de migração, da pulverização de suas comunidades, da saudade de sua aldeia mãe e da privação dos seus costumes na vida na cidade. Também temos contato com histórias de antigos moradores, que trazem memórias do local. O rio Baquirivu-Guaçu, hoje poluído, já foi a fonte do alimento (pescaria) e local de lazer das crianças que cresciam na região. Nesse momento a narrativa ficcional se converte em um documentário, rompendo com sua proposta inicial.
O problema do filme não é o estranhamento que ele provoca em sua narrativa repleta de aleatoriedades e desconexões. Ainda que os momentos contemplativos se prolonguem, eles dão espaço à reflexão e ao preenchimento das lacunas por parte do espectador. É quando se converte abruptamente em um documentário que o estranhamento se transforma em desconforto. O filme perde sua unidade. Para além, toma do espectador aqueles fragmentos que havia recolhido – tal qual os tesouros de Alê – e entrega um discurso pronto, quase pastoral, aliado a um formato hermético, convencional, contrastando com o experimentalismo que se prestava em seus dois primeiros arcos.
O Estranho foi assistido no 17 Festival Internacional de Cinema Cine BH.
JORNALISTA E PUBLICITÁRIO. Cresceu no ambiente da videolocadora de bairro, onde teve seu primeiro emprego. Ávido colecionador de mídia física, reune mais de 2 mil títulos na sua coleção. Já participou de produções audiovisuais independentes, na captura de som e na produção de trilha musical. Hoje, escreve críticas de filmes pro site do Cinema com Crítica e é responsável pela editoração das apostilas do Clube do Crítico.