Cada obra do sul-coreano Hong Sang-soo retoma seu estilo mínimo, monótono, anedótico e despido de intercorrências. Seu cinema é brando e confortável de contemplar, mesmo que a leitura apressada e, por isto, equivocada seja de que é mais do mesmo dentro da obra dele. Na realidade, a percepção que tenho a respeito da obra do mestre sul-coreano é de que cada obra é um capítulo de um livro escrito por um Poeta – um personagem recorrente em seu cinema e que agora morreu tragicamente jovem -, assim justificando a repetição, ocasionalmente desafiada por um ajuste microscópico de um ou outro elemento narrativo e estilístico.
O seu primeiro trabalho deste ano, A Traveller’s Need, troca o soju, pelo makgeolli, uma bebida de característica alcoólica e preferida de Iris (Isabelle Huppert), uma imigrante francesa na Coreia do Sul cujo passado e futuro são incertos. Há só o agora, o que explica o motivo de apreciar sentir o toque do rio ou da terra, de caminhar descalça, de viver cada interação e cada aula de francês, o meio de sustento no país, ainda que não tenha experiência didática, nem apostila. Iris encontra os alunos e, a partir da estrutura repetida, ensina-os o idioma a partir de uma fita cassete – que não escutamos – e a interpretação cotidiana anotada em francês em bloquinhos de papel.
Iris não é o mistério que parece ser, caso enxergada poeticamente. Óbvio que a curiosidade inspira o espectador a buscar pistas de quem era, por que imigrou da França e como conheceu o jovem Inguk (Ha Seongguk), com quem divide apartamento e aparenta ter um relacionamento romântico, mas isto afasta o olhar para o que de fato importa: o agora. Agarrar-se à racionalidade é um esforço frustrante ainda que tentador. “A primeira parte é boa, a segunda é diferente”, explica Iris à primeira aluna, uma ideia existente nos encontros, inicialmente divididos em partes coincidentemente similares, ao ponto de personagens diferentes em oportunidades diferentes responderem a mesmíssima coisa. Este até parece ser o ‘jogo’ de Hong Sang-soo, até subverter a segunda metade de seu filme e expandir a sua construção a Inguk.
No meio do caminho, a direção acolhe a espontaneidade e os obstáculos como elemento constituinte da narrativa. Enquanto come uma comida típica sul-coreana, Iris olha para o lado e sorri brevemente para alguém que imaginamos estar fora do campo de visão – ou seja, dentro do restaurante, mas não registrados na imagem -, mas que possivelmente está fora do quadro. E aí, não é mais Iris, mas sim a própria Isabelle Huppert que deveria estar recebendo instruções da direção. O trecho é mantido, tal qual o em que Iris traduz, em francês, a poesia escrita em um monumento. A fala dela é interrompida pelo estrondo do motor de uma motocicleta, em duas oportunidades, embora a cena prossiga mesmo que a atriz veterana pareça ter pedido a concentração. A ideia de manter, no corte final, uma cena a princípio prejudicada por fatores imprevisíveis e externos à filmagem caminha ao encontro do jogo de encontros fortuitos que há na narrativa: a visita inesperada da mãe de Inguk, o encontro com a jovem na rua.
Mais uma vez percebo a minha tentação de racionalizar uma obra poética, organizada em estrofes e com refrões (ex. os monumentos onde estão inscritos poesias ou, então, o patrono responsável por uma doação expressiva) e rimas literais, mas na maioria das vezes emocionais. Se a jovem aluna de Iris lembra aos prantos que, embora sinta vergonha do pai por ter ‘comprado’ reconhecimento, tinha certeza de que este a amava, a mãe de Inguk admite amá-lo, apesar de ter permanecido ausente. A ausência de identidade revela uma afinidade sentimental, e é desta água límpida que bebe a direção em A Traveller’s Need.
Uma obra que, perdoe o trocadilho, não tem necessidade de ser racionalizada para ser sentida como uma ode ao momento presente.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.