É compreensível que muitos diretores tenham decidido ‘interpretar’ a pandemia e a quarentena de Covid-19, nos chamados filmes de câmara ambientados em um ambiente ou localidade. Contudo, talvez seja Olivier Assayas quem tenha proposto o retrato mais francês e burguês desse período em Hors du Temps, a sua ficção autobiográfica, na qual Vincent Macaigne interpreta o alter-ego do cineasta, Paul.
Paul, o irmão Etienne (Micha Lescot) e as respectivas consortes, Morgane (Nine D’Urso) e Carole (Nora Hamzawi), viajam à casa de campo da família durante a quarentena e revivem memórias do passado ao mesmo tempo em que aguardam o término do confinamento. Não é um ambiente em que estejam ameaçados, senão pela ansiedade de Paul e pela rabugice do vizinho. É, sim, um ambiente propício para a manipulação do tempo sensível através das ferramentas cinematográficas apropriadas, revelando-se com isto uma obra metalinguística, que parte da Covid-19 para discutir o poder da arte em controlar a experiência temporal – do espectador e dos personagens.
A narrativa concilia uma abordagem documental reduzida, na qual Olivier Assayas passeia por fotografias do passado e vídeos do presente, com o acompanhamento de uma narração poética blasé, e uma abordagem ficcional, retratando o dia a dia da família, as contradições e reflexões proporcionadas por um tempo ‘incerto’. É, de certo modo, o ontem. Paul pausou o agora e caminho em direção ao ontem, pois é necessário fazê-lo para regressar ao agora. É um flashback inusual, pois a materialidade dos corpos é transportada ao passado (a casa e os arredores), em vez da praxe de ser a imaterialidade da memória dos acontecimentos viajando ao ontem. E, paradoxalmente, o ontem é o hoje com suas contradições inerentes.
A comunicação por meio de dispositivos que abreviam a distância (smartphones, tablets ou computadores) e a aquisição de objetos, compulsivamente reforço, através aplicativos são os meios pelos quais o hoje invade o ontem, inserindo a ansiedade e o imediatismo típicos de nossa era em um período de tempo suspenso. É um tempo no qual os personagens e, portanto, os espectadores são obrigados a interromper suas expectativas em favor de uma restrição sanitária que provocou modificações na vida de cada um.
Além disso, ao mesmo tempo em que o agora proporcionou facilidade comunicacional, com a troca de mensagens, áudio e vídeo instantaneamente, também trouxe incompatibilidades: é o sinal fraco do Wi-Fi ou a falta de conector apropriado no computador da Apple, culpados pela ansiedade de muita gente. E, de um jeito intrigante, o diretor adapta essa dicotomia à narrativa: o confinamento aproximou irmãos, e estes de suas companheiras, de tal maneira que o diretor admite apreciar a experiência. Mas esta tem ainda ruídos de comunicação, na forma de conflitos, de personalidades incompatíveis e de comunicação violenta.
Cobro-me pelo fato de apreciar a ideia contida na narrativa, e não a ter admirado além do aspecto intelectual, inclusive por ter embarcado na lógica de que não há nada acontecendo e nada acontecerá de marcante, e está tudo bem. É somente uma questão de tempo até esse período no campo encerrar, do mesmo modo que é só uma questão de tempo até o término do filme, que encapsula o ‘tempo’ num vasilhame maleável. Um tempo concretizado na extensão de sequências, no recorte do espaço onde o tempo fluirá, e na dinâmica criada por Macaigne e Lescot, que minimizam, com bom humor, o ranço que porventura haja em acompanhar dramas burgueses de classe média, enquanto milhões de pessoas morriam ou perdiam o pouco que possuíam.
Olivier Assayas é um diretor de altos e baixos, às vezes altíssimos (Carlos) e baixíssimos (Wasp Network) mas é um conhecedor profundo da arte e natureza cinematográfica, transformando o tempo, em vez do alter-ego ou das memórias de outrora, no protagonista deste curioso experimento.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.