Somos apresentados à comissária de bordo Gina, protagonista de Uma Escala em Paris, através da narração solene e onisciente da ótima Anjelica Huston. “Invisível” e “romântica”, Gina perde o toque com a realidade após o companheiro, Paul, cometer suicídio e culpa-lá ante a ausência ínsita à profissão. Após período não especificado na narrativa, Gina viaja à Paris com as colegas de trabalho e, ludibriada por uma cartomante, teima a acreditar que o barman Jêrome, empregado há década em um cabaré decadente, é o homem da sua vida. Uma noite de sexo – para ele, casual – é o bastante para ela abandonar e a profissão e mudar de endereço, entretanto seu comportamento obsessivo encontra óbice no regresso de Clémence, o antigo amor de Jêrome.
A atmosfera da narrativa, tirada majoritariamente do ponto de vista de Gina, é banhada em filtros multicoloridos e retratada através da fotografia ruidosa e granulada de uma Paris suja e marginal, longe da mágica e encantamento usualmente associados à Cidade-Luz. Estes aspectos técnicos só reforçam o compromisso do diretor e co-roteirista Nathan Silver com o transtorno dissociativo da protagonista, cuja conjuntivite contraída de Jêrome parece não ter embaçado, temporariamente, somente sua visão, como também seu discernimento. Não demora para Gina alugar o apartamento defronte do de Jêrome e sufocá-lo de todas as formas que apenas stalkers conseguem fazer.
Mas Lindsay Burdge evita que Gina deteriore-se, rapidamente, ao olhar do espectador, que dificilmente simpatizaria com uma stalker / voyeur. Sua solidão e ingenuidade delirante auxiliam a narrativa a permanecer nos eixos, e note que ao interpretar a canção The Time Is On My Side, dos Rolling Stones, não captamos a malícia das personagens obsessivas típicas; pelo contrário, a sensação é a de estarmos em um conto de fadas, embora muito além da Disney.
Curiosamente, podemos sentir ojeriza e repulsa de Jêrome, em tese a vítima. Entretanto, isto desaparece diante da paciência e, em certos casos, preocupação que sente por Gina, além do desprezo que sente por si próprio: há mais de uma década, tem prometido abrir sua danceteria, mas não o fez.
A profundidade de campo rasa e os primeiríssimos planos – o diretor de fotografia Sean Williams, inclusive, não tem pudor em cortar partes do rosto dos personagens – tornam o espectador cúmplice de Gina e salientam a dificuldade de a visão periférica enxergar algo afora a “paixão” por Jêrome. Enquanto isto, o desconforto narrativo introduzido por Nathan Silver, com inspiração na obra de Roman Polanski a Brian De Palma (com o uso split dioptre do diretor) e certo erotismo blasé com uma trilha sonora característica do cinema setentista, bem como a abordagem original, fazem de Uma Escala em Paris uma experiência única e irresistível para quem procura fugir da mesmice em direção à autoralidade.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.