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Armugan

Armugan

91 minutos

Narrativa existencial sobre vida e morte remete à obra de Béla Tarr

A matéria cinematográfica recebe substância a partir da reação com o meio onde está inserido, e não há como divorciar uma reflexão sobre Armugan da pandemia do SARS/Covid-19. Se em Higiene Social, sobre o qual comentei ontem, a questão do distanciamento social era trabalhada dentro da narrativa como um elemento estilístico e estético, a morte se apresenta como a matéria prima de um drama poético e existencial espanhol, que em alguns aspectos remete à obra do húngaro Béla Tarr.

Desse modo, é no rio que conduz da vida à morte que o personagem-título, impossibilitado de se locomover sem o auxílio do servo Ánchel, surge como o barqueiro que auxilia na travessia. Esta figura mítica de que dependem os habitantes das regiões vizinhas para que seus entes queridos repousem o sono eterno em direção ao paraíso. Mas seriam necessários milhares de Armugans para assistirem às dezenas de milhões de mortes provocadas pela pandemia evitável, em maior ou menor grau.

Por testemunhar a morte como parte do ofício, Armugan entende a preciosidade da vida, e o conflito que é posto diante de si é em honrar qualquer respiro ou batimento do coração, ainda que seja auxiliado por aparelhos. Esse atrito entre vida e morte é trabalhado dentro da proposta de Jo Sol, diretor e roteirista, a partir do estilo cinematográfico que privilegia a comunicação não verbal, o contexto e o contraste, em detrimento de uma trama convencional ou da exposição demasiada.

Aqueles homens não têm muito o que falar depois de seus olhares se cruzarem e expressaram o que apenas seria redundante em palavras. À narrativa, é mais relevante que Armugan ensaie murmurar algo a Ánchel enquanto este lava os seus pés, do que o murmuro propriamente dito. Jo Sol discursa a partir da hesitação, não da literalidade, e o desenvolvimento dos personagens é construído diante da relação deles entre si e com o meio onde se inserem, a exemplo do belo quadro em que estão de costas à parede de pedras da casa onde habitam.

Enquanto isto, o pastoreio de um rebanho com cerca de uma dúzia de ovelhas é representativo, de forma religiosamente simbólica, enquanto também tem associação com a morte. A chegada de um cordeiro sucede a partida de mais uma pessoa, como se a natureza harmonizasse isto com aquilo, e ainda antecede o evento narrativo de que Armugan se ressente, levado a cabo por Ánchel.

É o mais perto que a narrativa chegará de um conflito, pois, no restante do tempo, Jo Sol encontra o caminho na contemplação estilizada a partir da fotografia em preto e branco, em que coexistem luz e sombras, de forma sinônima ao que acontece com a vida e morte. Enquanto isto, a longa duração dos planos parece reverenciar o retorno do homem ao mundo natural ou, noutro contexto, o luto e respeito àqueles que partiram. Este aspecto ganha maior tônus na cena durante os créditos, em que a direção enxerga os rostos enrugados e resignados, respeitando a triste mas necessária despedida.

Armugan se revela ao espectador de forma oblíqua, com o auxílio de personagens que aprenderam acerca da dispensabilidade de barganhar com a morte, a ponto de economizarem diálogos em favor da sensibilidade, conscientes da solenidade que cerca o momento de adeus que ajudam a eternizar. E que se torna significativo e doloroso no contexto contemporâneo mundial.

Armugan está disponível na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

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