Analistas de premiações permaneceram perplexos em como, do dia para noite, “1917” passou a ser o filme a ser batido no Oscar de Melhor Filme depois de faturar o Globo de Ouro e, mais importante, o Prêmio do Sindicato de Produtores (PGA), desbancando os então favoritos “O Irlandês” e “Era uma Vez em… Hollywood”. A produção de guerra do diretor vencedor do Oscar Sam Mendes (“Beleza Americana”) ganhou musculatura no momento certo, conquistando também o status de sucesso de bilheteria e favorito do público ao lado de “Coringa”. Mas, apesar destes fatos, “1917” é o menos satisfatório dentre todos os 9 concorrentes ao prêmio maior da indústria cinematográfica de Hollywood e a causa disto é simples: preferir a forma e o estilo à substância e ao conteúdo.
Co-escrito por Mendes em parceria com Krysty Wilson-Cairns, o roteiro não é baseado em fatos reais, mas nas histórias contadas pelo avô de Sam, Alfred, combatente do exército inglês na primeira guerra mundial. A trama é direta: os Cabos Blake (Chapman) e Schofield (Mackay) precisam entregar, o mais cedo possível, uma mensagem ao capitão de um batalhão de 1.600 soldados para cancelar um ataque planejado contra o exército alemão, que havia recuado como meio de atrair os ingleses a uma armadilha. Blake e Scofield, portanto, precisam percorrer um espaço de quilômetros em cerca de um dia para impedir um massacre.
Não é difícil perceber como a proposta narrativa de ser filmado como se aparentasse ser um plano-sequência – a rigor, uma tomada que atravessa espaço e tempo sem cortes, quando, na realidade, a produção é composta de tomadas longas costuradas por cortes escondidos – não é apenas a técnica em nome da técnica, mas enfatiza a importância do tempo e a urgência da missão. Assim, melhor louvar o diretor de fotografia Roger Deakins (indicado a 14 Oscars, e vencedores de somente 1), com momentos em que a câmera “parece” esgueirar-se por dentro do arame farpado ou caminhar sobre a água onde boiam cadáveres de soldados, ou em que pode empregar a iluminação prática – aquela feita por objetos de cena, não por fontes de luz externas – para executar tomadas dentro dos abrigos nas trincheiras e sequências noturnas irrepreensíveis. E não faltam momentos arrebatadores, como a queda de um avião inimigo que se revela perigosamente próxima logo que surge detrás de uma colina ou uma luta pela própria vida havida em primeiro plano longe do olhar de um soldado alemão.
Auxilia a tarefa da fotografia, marcada por cores enlameadas e desbotadas, o design de produção hostil de Dennis Gassner (também vencedor de 1 Oscar), que recria as trincheiras alemã e inglesa como reflexo da moral dos adversários. Cada cenário descoberto por Blake e Schofield, em simultaneidade com o espectador, é uma oportunidade para que Gassner nos choque com o talento de planejar cada “fase” por que passa a dupla: a zona de conflito pesada e empossada que serve de cemitério para animais e soldados, como evidencia um rosto aos gritos ou o cadáver em putrefação de um cavalo, a fazenda abandonada anunciada pelo jardim de cerejeiras e as ruínas da cidadela em chamas após uma ponte destruída. Além disto, como o roteiro não tem tempo, justificadamente, para estabelecer e desenvolver seus personagens, esta missão é assumida parcialmente pelos figurinos de David Crossman e Jacqueline Durran. Repare como Blake e Schofield vestem-se diferentemente, este menos aprumado do que aquele e como isto revela muito sobre a maneira com que enxergam a guerra, e como o close nas botas do personagem interpretado por Mark Strong enfatiza o tempo que este deve ter estado em meio aos conflitos poupando-nos de diálogos expositivos.
Contudo, sem desprezar o empenho de Sam Mendes e de sua equipe nos ensaios que viabilizaram a produção, é decepcionante notar como é a narrativa quer se amoldar ao artifício, não o contrário. A sensação é de que Mendes tentasse encaixar sequências que exigiriam uma abordagem mais convencional e menos dinâmica dentro de uma proposta incompatível. Por exemplo, o encontro de Schofield com uma sobrevivente francesa e seu bebê desperdiça seu potencial dramático ao abdicar dos detalhes que compõem o mosaico deste momento. É por isto que o diretor tem à disposição um conjunto de ferramentas da linguagem cinematográfica que acentua o impacto dramático, como o close, o qual, nesta narrativa, é substituído somente pelo plano-sequência, que por sua natureza, impede ou ao menos dificulta a conciliação com decisões estéticas diversas. Onde sobra virtuosismo, falta emoção e até mesmo coerência, pois se a câmera às vezes atua como um terceiro soldado, revelando o ponto de vista subjetivo da missão, noutras, sem explicação alguma, converte-se em uma observadora seguramente à distância.
Felizmente, George Mackay, ao melhor estilo Tom Cruise, mostrou-se apto a desenvolver seu personagem construído apenas pela entrega à missão, indo da caminhada relutante à corrida movida por um misto de instinto de sobrevivência e de honra. E, por mais impreciso que possa aparentar esta tarefa, o espectador pode preencher a lacuna em torno do personagem só com as migalhas que são dadas pelo roteiro. Já quanto ao elenco adicional, com Colin Firth, Andrew Scott, Mark Strong, Benedict Cumberbatch e Richard Madden, em figurações episódicas como foram aquelas em “Além da Linha Vermelha”, estes adicionam relevância a personagens definidos por seus diálogos (“Alguns homens só querem lutar”, “Esperança é uma casa perversa”).
Com uma mensagem triste, porém esperançosa acerca dos efeitos deletérios e provisórios da guerra a partir da observação de um pomar de cerejeiras, é um alívio melancólico que “1917” atinja o desfecho fechando um ciclo completo: se podemos “descansar” da abordagem implacável da narrativa é para constatarmos que a missão de Schofield só serve, numa análise realista, para retardar o inevitável, devolvendo-o aonde tudo começou.
Mesmo porque, no final das contas, as medalhas dadas as heróis são meros pedaços de metal e tecido, que enferrujam e desgastam, sem a serventia das histórias que nossos pais contavam e que até hoje ajudam a preservar as memórias e os feitos que mal sonhávamos testemunhar, ainda mais cerca de um século depois.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
1 comentário em “1917”
Entre os que julgam o filme como obra-prima insuperável e os que vêem apenas um lixo abominável, você foi a voz da ponderação, pontuando forças e fragilidades. Obrigado por isso!