Texto publicado durante a coberta da 44ª Mostra de Cinema em São Paulo
“Quem você é como artista?”, esta é a pergunta que deveria nortear cada biografia cinematográfica e que Stardust mal arranha a superfície, quanto mais aprofunda o estudo da personalidade de quem escolheu abordar: David Bowie. A ideia da desconstrução do mito para encontrar a pessoa real, com problemas e traumas idem, está no núcleo da maioria das biografias e é também uma razão por que tendem a falhar, pois não é a humanidade que o espectador busca neste instante, mas a genialidade ou a individualidade que os diferencia do restante e que a direção de Gabriel Range tardiamente identifica. Talvez isto ajude a explicar por que Bohemian Rhapsody, um desastre narrativo, amealhe fãs, ao confiar desde cedo na idiossincrasia de Freddie Mercury.
Diferente desta cinebiografia, Gabriel e Christopher Bell têm a boa ideia de condensar o roteiro em um intervalo de tempo: 1971-72, quando David Bowie aterrissava nos Estados Unidos para iniciar o que acreditava ser a primeira turnê naquele país. Em vez de explorar décadas de carreira e amargar a superficialidade decorrente, o roteiro namora a ideia de filme de superação, em que um forasteiro deve comprovar que o espectador está certo em investir e doar-se à história. Isto tem início com a apropriação da atmosfera de 2001: Uma Odisseia no Espaço no sonho de Space Oddity, seu primeiro sucesso, e o estranhamento do norte-americano médio e conversador com aquele homem de sapato de talão alto, vestido e avesso à moralidade burguesa.
O choque cultural é reforçado a cada batida do roteiro, como na entrevista na rádio interrompida a conta de um palavrão e a atitude esquiva de David Bowie ao ser provocado a penetrar na relação com o irmão, doente psíquico, e é apenas uma parte deste mosaico do cantor, com dificuldades de se estabelecer localmente por não possuir visto de trabalho ou autorização do sindicato de músicos para apresentar-se no palco ou nas rádios. A promessa de estar na capa da revista Rolling Stones é um destes sonhos inalcançáveis, a princípio, e que mundaniza a biografia a ponto de a história de Bowie não ser tão diferente do que a de um cantor iniciante com o mesmo sonho.
Desta forma, penso que a superação de obstáculos burocráticos ou culturais, ainda que rendam momentos e reflexões interessantes, seja o mais trivial dos conflitos dramáticos quando pensamos em uma biografia de quem em nada era assim. A narrativa até tenta encontrar uma balança emocional nos flashbacks do cantor e na relação submissa com Angie, personagem de Jena Malone, mas não se dedica a isto, salvo como um elemento acessório e mal resolvido ao panorama completo.
É estranho, para dizer o mínimo, assistir à biografia de artista que seja, sem conferirmos a obra que realizou. A arte não é o elemento central, e pode até ser uma muleta narrativa para levantar o público quando o filme falhou neste propósito, mas também é inusual não vermos a consequência dramática na forma da criação. E também não deixa de ser uma provocação irônica que o David Bowie de Stardust esteja censurado de cantar nos Estados Unidos, pois a produção não estava autorizada pelos familiares do músico a utilizar as composições na trilha musical.
Dá até para se empolgar com a atuação sóbria e o medo de Johnny Flynn em acreditar não ser bom o bastante ou com o misto de confiança e frustração de Marc Maron em assistir àquele em quem acredita sabotar-se sempre que pode ao passo em que é a chance final de ter um futuro para si no mercado fonográfico. Entretanto, por mais que Stardust saiba a história que deseja narrar, talvez a abordagem não seja a mais indicada a este homem que caiu dos céus na terra.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.