Liam Neeson interpreta assassino de aluguel com Alzheimer
Depois de Busca Implacável, os filmes de ação protagonizados por Liam Neeson se tornaram tão comuns quanto era encontrar o ator interpretando o arquétipo do sábio ou emprestando o timbre da voz a animações e ao narrador de documentários. Assassino sem Rastro é somente o mais recente filme de ação a adotar a persona que o ator septuagenário criou como a muleta de criação e desenvolvimento do personagem Alex Lewis, um assassino de aluguel que inicia uma caçada solo contra uma rede de pedófilos protegidos pelo alto escalão do poder. Para dificultar a missão, Alex começa a ter lapsos de memória típicos da doença de Alzheimer.
Não que faça muita diferença no roteiro de Dario Scardapane (que assinou episódios da série da Marvel, Justiceiro), já que o esquecimento de Alex é resolvido com informações anotadas no braço ou com a boa vontade do roteiro. Com efeito, a doença apenas tenta conferir um arco trágico ao personagem, pois não reduz sua habilidade – Alex encara meia dúzia de policiais em certo momento -, nem a determinação e o propósito diante da quantidade de informações que possui. Quem parece imobilizado é Guy Pearce, que interpreta o típico agente do FBI que deve agir de acordo com a cartilha. Ao lado dele, coadjuvantes que nada acrescentam, interpretados por Taj Atwal e Harold Torres.
A presença de personagens que acentuam a representatividade, porém com mínimo acréscimo à narrativa, e o estabelecimento do pano de fundo geopolítico com a atuação da agência ICE e o aprisionamento de imigrantes em gaiolas, acrescentados à doença do protagonista, procuram diferenciar a narrativa de seus semelhantes, enquanto permanece o mesmo no quesito formal. Começa com a briga entre FBI e a polícia local, clichê recorrente no gênero policial; passa pela corrupção, burocracia e politicagem das organizações; encerra no homem que, a fim de realizar justiça, precisa agir fora dos limites da lei – um clichê também recorrente. Assim, mesmo que a narrativa acredite, não há nada de original nela. Nada.
Tampouco o diretor Martin Campbell, que depois de 007: Cassino Royale não realizou nada de memorável, tem algo a acrescentar no desenvolvimento de cenas de ação mais burocráticas do que as estruturas de justiça criticadas pelo roteiro. Martin emprega a simultaneidade de ações como um meio de construir um suspense inexistente, a exemplo da cena que acontece dentro do barco, e tenta extrair a gota final de suor de Liam Neeson, em stunts tão arriscados quanto o pular da cerca em Busca Implacável 3.
Liam Neeson confere algum peso dramático ao personagem, mais vulnerável do que esteve em papéis anteriores, mas sem que o roteiro instrumentalize e dramatize a doença e a dor do personagem, o esforço do ator azeda. Enquanto isso, Guy Pearce está preso à caracterização convencional do detetive, policial ou agente típico, fisicamente descuidado – com cabelos compridos e desgrenhados, o semblante cansado – como a ilustração do estágio emocional e da confiança que tem no meio em que trabalha. Quem surpreende é Monica Bellucci, em papel atípico, como o chefão final que Alex (ou Vincent) deverá vencer.
Igualmente típico do gênero é o desencantamento das forças policiais – e a resignação dos que exercem a justiça: juízes, promotores, chefes de polícia – diante de investigações de crimes cometidos pela elite da sociedade. É apoiado nisto que a narrativa defende o justiçamento com as próprias mãos, sem qualquer juízo crítico, como alternativa para buscar a justiça no mundo injusto. Era o que faltava para Assassino sem Rastro gabaritar o típico exemplar do cinema de ação policial de ontem e hoje.
Assassino sem Rastro está em exibição nos cinemas.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.