A postagem final do Festival de Toronto de 2022 com comentários sobre Walk Up, All the Beauty and the Bloodshed e mais
Walk Up
A essa altura do campeonato, criticar o cinema de Hong Sang-soo por ser como é fala mais sobre o crítico do que acerca do artista. Com dois e até três lançamentos anuais, o diretor sul-coreano está na zona de conforto temática, técnica e artística. Mas isto não é sinônimo de preguiça, é a consciência do diretor da ambição e poderio artístico. A cada capítulo (dá para chamar cada filme de capítulo de uma obra maior ou até mesmo de um diário), Hong Sang-soo revela mais sobre si mesmo, sobre a forma como pensa espaço e tempo no cinema e como acontecimentos, a priori mundanos, podem modelar a experiência de seus personagens.
Kwon Hae-hyo retoma a parceria com o diretor e interpreta seu alter-ego, um diretor de cinema famoso no circuito de festivais, que tenta se reconectar com a filha durante a visita à edificação reformada pela arquiteta Lee Hye-young. O desejo do diretor é de que a filha, que deseja ser designer de interiores, trabalhe com a arquiteta, e ela, a seu tempo, flerta e paparica com o diretor, oferecendo-lhe para morar gratuitamente na cobertura do prédio. No prédio, o restaurante da proprietária interpretada por Song Seon-mi, com quem o diretor inicia um relacionamento.
Hong Sang-soo explica, através da boca do vaidoso protagonista, a ambição de seu cinema. Ou está apenas brincando com o espectador acostumado a procurar seus traços pessoais em sua obra? Até que ponto os artistas (ou poetas) da obra de Sang-Soo são seu alter-ego ou pista falsa para fisgar quem pensa e reflete cinema a partir da relação entre autor e obra. Na realidade, a estratégia de Walk Up, além da reunião do elenco em cenas extensas em que os personagens bebem muito e jogam papo fora, é jogar com as políticas de espaço e tempo, matérias-primas do cinema, na opinião de Noël Burch.
O espaço não muda, mas continua comprimindo os personagens dentro dos cômodos da edificação. Quando muda, é de modo discreto para refletir a passagem do tempo. A cada episódio, reencontramos os personagens noutro momento da vida: a relação pacífica entre Hae-hyo e Hye-young azeda, já Hae-hyo e Seon-mi aproximam-se. O tempo não passa de maneira fluida, mas em cortes secos que desassociam o antes do agora, e é ressignificado na cena final que obriga o espectador a questionar o que assistiu. Se a obra de um diretor e criador talentoso refletindo o que a vida será ao ar livre arejado, não dentro da edificação, ou o retrato do que passou na figura de que a vida está sempre se repetindo.
E é por a vida estar sempre se repetindo, mas de modos diferentes, que Hong Sang-soo não pode ser criticado por fazer o mesmo filme, com detalhes diferentes. Ao entender que a vida é o eterno retorno ao ponto de origem, o diretor criou um ninho (e nicho) onde a arte pode fluir. Walk Up é só mais este capítulo no todo.
All the Beauty and the Bloodshed
A cada biografia que assisto, posso confirmar a existência de múltiplas formas que o gênero adota, seja na ficção ou no documentário, e dentre as muitas que tenho visto, posso afirmar que é a pluralidade a característica mais animadora de All the Beauty and the Bloodshed, o filme que venceu o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2022 e tem a direção de Laura Poitras, a vencedora do Oscar por CitizenFour.
Talvez porque Nan Goldin seja plural. Todos somos, evidentemente, mas é o mosaico que melhor define a artista fotógrafa e ativista. Nan participa do documentário, é peça-chave em ser a guia através da história de sua vida e é atriz profissional, nos dias atuais, diante dos protestos contra a Purdue Pharma e a família Sackler, patrona de museus e galerias de arte em Nova York, e responsável pela epidemia dos opioides OxyContin. Pude conhecer a obra da artista, que explora as possibilidades do corpo com a lente de sua câmera em uma época de quebra de tabus, não de reconstrução deles; a lembrança dolorosa da sobrevivente de abuso doméstico e do luto pela perda da irmã; a alma aguerrida da ativista, que invade museus nos Estados Unidos para protestar contra os milhares de mortos pela epidemia de opioides (recomendo a minissérie Dopesick).
Os museus, onde Nan exibe o trabalho de sua vida, são também o ponto de intercessão da narrativa, por ser o ambiente onde acontecem os protestos e através do qual a família Sackler alegadamente lava dinheiro em filantropia e recebe o prestígio com o nome estampado nas galerias. O documentário optou por apresentar a figura do antagonista, com direito à batalha final, mas talvez isto fosse descartável, diante da riqueza da vida de Nan Goldin. Ao revelar a artista detrás de um prisma que refrata a luz em sensações visuais abstratas e indescritíveis, Laura Poitras celebra a força de que o gênero biográfico pode ter não em resumir o indivíduo, mas em revelar o mundo de abordagens e recortes possíveis.
No fim, é a colmeia de pequenos pontos no espaço que melhor definem cada qual de nós. Não somos apenas o resultado da arte ou do trabalho que realizamos, as pessoas que tocamos, as causas por que batalhamos, somos os espaços que há entre essas dimensões e as estradas que os conectam.
I Like Movies
Pouquíssimos filmes que vi neste ano tem um protagonista tão insuportável quanto o da comédia (ou “comédia”) I Like Movies, e isto obriga refletir sobre a possibilidade do público estabelecer alguma relação saudável com a obra quando convidado a estar na companhia de alguém inconveniente e aborrecido. Há obras baseadas na caminhada de aprendizado e de transformação individual, na capacidade de concluir a jornada em cores melhores do que quando iniciou e no processo em si, já que a desconstrução da personalidade requer a dor e a frustração de rejeitar quem se era. Aí entra o envolvimento emocional do público, que pode rejeitar o protagonista, mas não o esforço.
Só que não há esforço em I Like Movies, apenas um adolescente narcisista e, pior, cinéfilo daqueles chatos a beça, que criticam o próximo pelos filmes e artistas de que gosta e repudia quem desconheça seu cineasta favorito (sei que você conhece alguém assim; espero que este alguém não seja eu). Além de tudo, Lawrence utiliza quem quer que seja para ter êxito em seus projetos e o descarta tão logo não tenha mais utilidade. Ele afasta o melhor amigo após ofender a namorada por insegurança em dividi-lo com ela, briga com a mãe, culpando-a pelo suicídio do pai (sério, tem como ser pior do que isto?) ou não escuta o relato sofrido da amiga (amiga?) Alana, sobrevivente de abuso.
Alana é muito mais interessante. Além de Romina D’Ugo, a intérprete, ter mais recursos do que Isaiah Lehtinen, a trajetória da personagem é mais cativante do que a do protagonista. Alana teve esmagado o sonho de ser atriz por uma indústria que a explorou (sexualmente), Agora, é a gerente de uma videolocadora, emprego que a obriga constantemente a recordar o sonho interrompido, a violência sofrida. Apesar disso, ajuda Lawrence no que pode, ainda que o adolescente repita o trejeito abusivo de quem toma, toma e toma tudo o que a pessoa pode doar, sem oferecer nada em retorno. É, preferiria que I Like Movies fosse sobre Alana, e até o título ganharia dimensão irônica.
Mas, ei, é sobre Lawrence, com direito ao momento em que a sua cinefilia é exposta dentro da sala de cinema, enquadrado debaixo da luz que desenha as imagens na tela e recobre em manta quente o protagonista. Há também o momento bonitinho em que assiste ao vídeo produzido no colégio, e do qual não foi convidado a participar, mas é pouco, pouquíssimo, para resgatar da artificial previsibilidade esta comédia dramática independente. Pior, sequer revela, de forma genuína, que Lawrence é capaz de reparar o que fez e está na caminhada de dar os passos que o transformarão em um adulto melhor.
Porque como adolescente, meu deus.
A Long Break
Gosto do cinema georgiano, bastante semelhante em tom e estilo ao romeno: Ilha dos Milharais ou My Happy Family são filmes que encontram no mínimo necessário a força que suas narrativas necessitam. Mas, pode ter sido o cansaço ou a exaustão, não houve muito que me atraiu em A Long Break, escolhido pelo país para representá-lo no Oscar 2023.
Se você me lê há bastante tempo, sabe que não gosto do adjetivo chato, embora não veja nenhum que melhor define a narrativa. No roteiro escrito por Davit Pirtskhalava, que também dirige, Tsitsi reúne os amigos de sua turma no mesmo colégio, onde foi moldada a personalidade deles em face a acontecimentos que somente a imaturidade justifica. Há algo carregado na atmosfera; não há amenidade nem saudade, mas farpas, inveja e amargor. A fotografia reproduz o ambiente pesado através de luzes que parecem escorrer e borrar o ar, enquanto a arquitetura de filme de câmera, ao menos em parte significativa do tempo, obriga o espectador a prestar atenção nos diálogos e nas atuações (pois o espaço é esgotado).
Muita lavagem de roupa suja, enquanto os “amigos” recordam memórias menos agradáveis e revelam comportamentos obtusos. A figura do zelador é introduzida, na narrativa, como um espectro que interrompe a ação, um fantasma do passado relacionado com a reunião do grupo mas que nunca realiza seu potencial dramático e narrativo. Fica só no quase. Igual ao filme, que não é ruim, mas chato. Chato igual àquele sujeito que não suportamos estar na companhia por 2 minutos, que dirá 110 minutos, e sobre o qual mal temos o que falar.
Wildflower
Tenha ressalvas nas apresentações de filmes feitas por elenco ou equipe. A de Wildflower é um bom exemplo. Matt Smukler, o diretor, quando subiu ao palco, adotou a concisão e o mistério. Nada poderia ser dito sob pena de estragar a surpresa contida no roteiro. Por si só, falar que há surpresas ou reviravoltas é uma maneira de spoiler (estragar), não acham? Pode não revelar o conteúdo do roteiro da obra, mas pode estragar a experiência do público que, agora, pode vivenciar a obra com expectativa e à procura da surpresa ou reviravolta. E não que Wildflower tenha, sob qualquer aspecto, algum dos dois; há somente o incomum, o traço característico de parte das comédias independentes norte-americanas.
Além, evidentemente, de uma família não convencional e uma adolescente, interpretada por Kiernan Shipka, que está na etapa de transição à vida adulta. Como a narrativa é contada em retrospecto, não há uma relação de causa e efeito que não a espera de saber o que acontecerá com Bea no presente. Aguardamos na antessala, onde a narradora passeia com o espectador por álbuns de fotografias metafóricos, reveladores da relação familiar com os pais, pessoas com problemas cognitivos congênitos ou adquiridos, e com os tios, que preenchem lacunas na formação pessoal e educacional de Bea, e do feudo que há entre as avós, interpretadas por Jean Smart e Jackie Weaver. Não há antecipação no ontem, apenas constatação, que ajuda a formar o estudo de personagem pregresso.
Apesar de contar com muitos atores coadjuvantes bacanas (além das veteranas citadas), o roteiro não sabe aproveitá-los senão em instantes esporádicos, que oferecem alternativas ao tradicional drama adolescente. Bea é marginalizada pelo grupo popular de alunas por ser pobre e pela família que tem, apaixona-se por um adolescente bacana (Charlie Plummer), cujo defeito somente pode ser tolo para ser solucionável, deve decidir entre ir ou não à festa de formatura e ainda briga com a melhor amiga por tê-la trocado pelo namorado.
Tudo resolvido com um abraço coletivo, a expressão do cinema independente McDonald’s, que mata a fome, mas não nutre, emociona de modo artificialmente calculado e, de alguma forma e apesar dos clichês e excessos, ainda deixa um gosto positivo. Deve ser porque Kiernan Shipka é uma atriz carismática, só pode.
Soft
Depois de ter o título mudado de Pussy, uma gíria norte-americana para se referir ao sexo feminino e também um sinônimo pejorativo de covarde, para Soft (suave), este drama de amadurecimento encontra o trio de amigos Julien (Matteus Lunot), Tony (Zion Matheson) e Otis (Harlow Joy) bagunçando e vivendo a vida como crianças cujo mundo são as ruas à frente de si. Julien, abandonado pela mãe e morando de favor com a profissional do sexo Dawn; Tony gosta de se vestir de mulher e tem o apoio da mãe; já Otis é educado de modo severo pelo pai religioso e precisa fugir para se encontrar com os seus. A amizade deles é vibrante em razão da autenticidade e da forma como a narrativa é encenada.
A câmera do diretor Joseph Amenta permanece perto do rosto do trio, registra momentos com intimidade e desrespeita regras de continuidade ou linearidade, em favor do agora, tal como o trio age e vive. O conflito é invisibilizado até onde pode, embora esteja presente na ânsia por pertencimento em um mundo em que há aqueles que repudiam o outro diferente. Assim, o modo retrato da câmera explora a dinâmica dos bairros da periferia de Toronto, o dia a dia nas ruas e a expressão da cidade bem distante dos arranha-céus que a definem à distância.
Se o rigor formal está encenado na liberdade que Joseph Amenta dá a sua câmera, esta ideia é aplicada no desenvolvimento da trama, menos coeso, com Julian saltando de lá para cá, em busca de uma boia que o ajude a não se afogar, com encontros esperados (a mãe de Tony) e inesperados (o cliente de Dawn cuja carteira furtou). Julian é novo, apesar de acreditar ser maduro o bastante para tomar à frente do trio e de sua vida, e alguns momentos abalam a confiança do jovem que quer ser grande antes do tempo mas é obrigado a enxergar a limitação que a idade confere.
Assim, Soft é mais um ensaio da vida como ela é do que a narrativa clássica de amadurecimento. Talvez porque, para Julian e jovens iguais a ele, periféricos e marginalizados, não há amadurecimento tradicional e careta igual àqueles que crescem sabendo quem são e o que farão, em vez de precisar descobrir isto nas ruas da vida.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.