Documentário sobre David Bowie e mais!
Moonage Daydream (2022), de Brett Morgen
Biografias vêm em formas variadas: um panorama da vida inteira de um sujeito relevante pode ser menos revelador do que o relato de um instante marcante e decisivo; um enfoque em quem são – a vida privada, as dificuldades que superaram para se tornarem quem são ou os pontos de vista políticos e sociais – pode ser mais humano do que revelar só o que realizaram – o processo criativo, os altos e baixos, a relação do que produziram com o mundo e as pessoas. Este gênero pode ser superficial o bastante para questionarmos a razão de existir ou enriquecer a memória e conhecimento do espectador a partir de fatos e facetas inexplorados.
De vez em quando, surge uma biografia que não é sobre a pessoa, no sentido de quem é, como alcançou o que alcançou ou o que fez. É mais um espelho (ou prisma) que reflete e refrata sua personalidade, seu espírito. Faz sentido que seja assim Moonage Daydream – intitulado a partir de uma das canções mais célebres de David Bowie -, pois o camaleão do rock não desejava ser refém da arte que criou e, como indivíduo, creio que ficaria feliz em assistir à obra reverente de Brett Morgen.
O diretor não é novo em biografias: depois de Montage of Heck sobre Kurt Cobain e Jane, da primatologista Jane Goodall, Brett conquistou o apadrinhamento do espólio de David Bowie – que inviabilizou a ficção Stardust em que Johnny Flynn interpreta o cantor – e pôde ter acesso a vídeos de arquivo, canções, comentários e um rico conteúdo que é trabalhado com recortes de clássicos do cinema ou jogos de iluminação para propor uma experiência de transcendência e retratar as fases da carreira de um artista autodenominado niilista – no princípio -, após otimista e romântico e, enfim, um sujeito apaixonado por estar vivo.
Brett entende o que movia Bowie e emprega suas palavras como argumentos defendidos. Não há ênfase no aspecto pessoal e artístico – uma crítica a Bowie ter se vendido surge não como conflito, mas como a etapa de uma carreira impermanente, que acolhia e entendia a mudança como um elemento essencial da experiência de estar vivo; o casamento com Iman aparece de modo breve. E o filme adota essa impermanência: a princípio, a abordagem é experimental, articula emoções e sentido pela junção de fragmentos a priori incompatíveis. Depois, emprega abordagens menos heterodoxas, mais narrativas. Faz isto com naturalidade: a mudança é parte de quem é o biografado então também deve ser um elemento narrativo para o revelar.
Há relances sobre quem Bowie era a partir de seu depoimento sobre a arte, a vida e morte, o existencialismo, mas esta biografia não é careta para lembrar deste ou daquele episódio, ou adicionar entrevistas com familiares e amigos. É uma biografia que capta a alma do artista, ao menos tenta fazê-lo, mais do que o sujeito de carne e osso que esteve na terra. Suas músicas emolduram a narrativa, a presença conforta de Bowie conforta, mas é a aura que permanece. E que sorte que vivi no tempo de Bowie.
All that Breathes (2022), Shaunak Sen
Durante um trecho do documentário dirigido por Shaunak Sen, tomamos conhecimento de uma lei migratória indiana favorecendo a entrada de refugiados oriundos do Afeganistão, Paquistão e Bangladesh, mas com uma pegadinha: menos muçulmanos! A relação da lei inconstitucional com a história de dois irmãos devotados a cuidar de aves de rapina da espécie Milhafre-Preto é circunstancial e não permanece às claras até entendermos o caldeirão em que se transformou a cidade de Nova Deli, momentos antes de uma insurreição social.
A relação, de forma poética, existe no contexto, mas não no pano de frente: as aves de rapina não eram protegidas pelas leis locais, somente as aves não carnívoras. Quem sabe assim a direção não esteja associando as aves à questão migratória e não apenas utilizando o tema social como elemento dificultador das ações dos irmãos.
O documentário é observador: não participa da ação senão através da câmera curiosa e que capta momentos que jamais poderiam ser encenados, como aquele em que uma aves “furta” o óculos de grau de um dos voluntários da clínica. O funcionamento do estabelecimento é objeto de análise: falta luz durante uma cirurgia, os medicamentos estão acabando e o freezer que os conserva está danificado. Os irmãos tentam obter investimento de um fundo internacional ou até de apoiadores locais – ou melhor, de um apoiador somente, que pode levar a questão: só há um apoiador do projeto OU o diretor não quis ou não pôde registrar os demais? Surge uma oportunidade para Mohammad estudar e se aperfeiçoar nos Estados Unidos. Será que deve ir?
Enquanto o documentário registra o trabalho paciente e cuidadoso dos irmãos, feito à base do amor, revela momentos em que são tomados pelo niilismo de um mundo na berlinda: a bomba nuclear ou a inundação dos oceanos são elementos apocalípticos introduzidos nas conversas casuais que têm. Otimismo não é a língua desses irmãos, mas mesmo em um cenário igual ao retratado, ainda assim podem realizar o bem que ninguém mais tenta fazer.
Tori e Lokita (2022), de Jean-Pierre e Luc Dardenne
Tori e Lokita são irmãos, ou não, mas isto não importa para entender o vínculo afetivo que os une. Eles vendem drogas sob as ordens de um traficante local, a fim de enviar dinheiro para a família e quitar o débito com o coiote que ajudou Lokita na imigração clandestina, enquanto esta tenta obter a cidadania para aceitar um trabalho como empregada doméstica. Como estarmos no cinema de Jean-Pierre e Luc Dardenne, a trajetória dos personagens-título será marcada por questões burocráticas, que provocam uma reação em cadeia na vida dos dois: Lokita aceita afastar-se por 3 meses do irmão para supervisionar, 24 horas e 7 dias, o plantio de maconha. Tori continua estudando e entregando drogas.
Adeptos de histórias em que conflitos sociais provocam a indignidade e marginalização dos personagens, os irmãos Dardenne fazem um cinema naturalista e dependente do instinto da sobrevivência e da proteção dos seus – no caso do filme. Seus personagens não buscam nada senão o mínimo existencial e não há conflito que não esteja enraizado na vivência de camadas frágeis: a criança abandonada, a mulher depressiva desempregada, o jovem muçulmano. Neste universo de histórias, a trama de Tori e Lokita lembra a de O Silêncio de Lorna – acerca de uma imigrante albanesa que buscava residência na Bélgica e se envolvia com o tráfico -, mas com uma crítica tão menos afiada quanto mais é explícita.
Tori e Lokita não merecem o infortúnio por que passam. Deveriam permanecer juntos; se não estão, é porque a política europeia de acolhimento do imigrante é injusta. Não há uma camada adocicada sobre a história, senão o afeto entre os irmãos. Isto mantém o espectador preso na força gravitacional dos eventos – não dos personagens -, e com a sensação de que sabe para onde a história está os levando, pois o mundo real não é o mundo do cinema.
A narrativa obriga a refletir onde termina o realismo e onde começa a tortura social, diante dos “nãos” e violências por que passam os personagens. Lokita depende mais do irmão, apesar de ser mais velha. Seus ataques de pânico são a consequência da responsabilidade que assumiu. Já Tori amadureceu rápido demais, quando deveria ser apenas criança.
A estrutura da história coloca os personagens em movimento – característica comum na obra dos Dardenne -, e vulnera este atributo com o trabalho que Lokita aceita e que exige sua permanência no mesmo local ou o ferimento que sofre no pé em certo momento. As atuações baseiam-se na expressividade dos atores não profissionais e na capacidade que têm de ser os sujeitos, ao invés de só representá-los. Isto confere verossimilhança aos personagens e não à história, cujos eventos estão fundados em uma extrapolação do real, não do natural. Há algum tempo, o cinema dos Dardenne tem sido assim: ao invés de deixar as ações e reações levarem à conclusão, o contrário: a estrutura é construída para que cheguemos ao final que planejaram.
Aqui, uma lição de moral em voz alta que enfraquece o que os diretores tentaram realizar em imagens, e conseguiram com ressalvas.
The Silent Twins (2022), de Agnieszka Smoczyńska
Após créditos iniciais criativos e que brincam com o elenco, enquanto o apresentam em um jogo de faz de conta e imaginação, The Silent Twins revela a cara do mundo real: Jennifer e June Gibbons não falam. Não porque não podem, mas porque não querem. São incomunicáveis dentro e fora de casa. Afora o bullying sofrido no colégio, desconhecemos qual o trauma – se é que há um – que as silenciou para o mundo, só não entre si. Os pais não sabem o que fazer e se mantêm como figuras distanciadas, enquadradas dentro de quadros separados – a exemplo de quando os vemos emoldurados pelo quadro de outro cômodo.
Separá-las na infância parece haver resolvido o problema, mas temporariamente. Já jovens, frequentam o ensino médio, tentam se integrar e sonham juntas em transformar em livro a imaginação revelada em animações stop motion perturbadoras e em que alguns personagens não apresentam bocas (um elemento óbvio dentro da lógica criativa, o que não reduz sua eficiência). Neste período, conhecemos o motivo por que silenciaram-se: a dicção enrolada é ressaltada nas atuações de Letitia Wright e Tamara Lawrance com efeitos contraditórios que remetem a Celie, personagem de Whoopi Goldberg em A Cor Púrpura. Um outro obstáculo surge, já apresentado na infância: as irmãs são competitivas, e em vez de se felicitarem mutuamente, apostam em agressões mútuas que revelam um possível problema moral da narrativa (só não maior em razão do pedigree do roteiro, baseado em fatos).
A diretora Agnieszka Smoczyńska (de A Atração) encara a história como misto de fábula e pesadelo, com a montagem agindo como meio de intercalação entre a iluminação quente da primeira com os tons sóbrios e ângulos austeros do real. A narrativa favorece a competente dupla de atrizes, mas prejudica a relação emocional criada com o espectador, distanciando-as de nós como se fossem curiosidades, não pessoas reais. Em certo momento, disputam o afeto de um homem branco: é de bom tom duas mulheres negras aquecendo a rixa que há entre eles só por causa dele? Acredito que não, apesar de o roteiro não arriscar debater a questão racial, a exceção de momentos pontuais – razão por que a presença de uma jornalista mal pode ser vista como o estereótipo da salvadora branca.
Se o conteúdo é misterioso, encenado de maneira turva, sobressaem-se as decisões estilísticas da direção envolvente na construção da imagem e de símbolos: na animação, um homem devora um papagaio, que antes havíamos associado às duas e ainda remete à tagarelice típica da ave. O estranhamento subjuga as relações humanas, escondendo-se detrás das virtudes da direção e da atmosfera opressiva. Só faltou confiar no espectador para criar um elo ainda mais forte com estas mulheres em cuja companhia permanecerá por 2 horas.
Nostalgia (2022), de Mario Martone
Histórias iguais a Nostalgia já foram objetos de inúmeras narrativas, em relação às quais sequer tenta se destacar este trabalho do diretor Mario Martone. Na trama, Felice retorna à Nápoles depois de 40 anos morando no Líbano e Egito, onde acumulou fortuna à frente de uma empresa de construção civil. Felice retorna à casa onde cresceu, somente para descobrir que a mãe vendeu o apartamento e mora no subsolo do edifício onde habitava. Ao mesmo tempo em que tenta corrigir os erros de 40 anos de ausência – atenuados por cartas -, Felice confessa ao padre da região a razão de ter fugido ainda adolescente.
A relação do homem com a cidade natal é explorada pela direção com felicidade: passeamos por ruelas e bairros de Nápoles, onde nasceu o diretor, e visitamos o ontem a partir de trechos 8mm ilustrados como se fossem filmados por câmera amadora. A ideia do homem como fruto do espaço urbano não é inédita, de novo, e Mario Martone acredita que somente este vínculo é o bastante para que Felice abandone a esposa no Cairo pelo que parece ser uma questão de semanas ou meses. Se o retorno ao lar é verossímil, as ações desencadeadas, não, embora haja beleza em assistir ao reencontro de Felice e a mãe ou a crítica na tentativa de o padre em converter Felice ou forçá-lo a pecar contra a religião muçulmana bebendo álcool.
Com efeito, Nostalgia é um tipo de filme mediano que é até difícil encontrar palavras. Eu gosto da atuação central de Pierfranceso Favino, a princípio na defensiva antes de se apaixonar por aquilo que identifica Nápoles enquanto passeia nas ruelas a noite, e também do momento que a direção proporciona junto com Tommaso Ragno: é uma conversa que remete ao melhor momento de Fogo contra Fogo, em que vemos antigos amigos, de lados opostos, discutindo o passado, a culpa, o futuro.
Só que essa cena é uma armadilha para o restante de um roteiro, pois, concluída, a sensação é de que os 20 e tantos minutos restantes servem apenas como um epílogo demasiadamente longo. Salvo se Nostalgia resolver com o único desfecho possível e previsível, qualidade que o filme usa e abusa.
Crítico de cinema filiado a Critics Choice Association, à Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Online Film Critics Society e a Fipresci. Atuou no júri da 39ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo/SP, do 12º Fest Aruana em João Pessoa/PB, do 24º Tallinn Black Nights Film na Estônia, do 47º TIFF – Festival Internacional de Cinema em Toronto. Ministrante do Laboratório de Crítica Cinematográfica na 1ª Mostra Internacional de Cinema em São Luís (MA) e Professor Convidado do Curso Técnico em Cinema do Instituto Estadual do Maranhão (IEMA), na disciplina Crítica Cinematográfica. Concluiu o curso de Filmmaking da New York Film Academy, no Rio de Janeiro (RJ) em 2013. Participou como co-autor dos livros 100 melhores filmes brasileiros (Letramento, 2016), Documentário brasileiro: 100 filmes essenciais (Letramento, 2017) e Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais (Letramento, 2018). Criou o Cinema com Crítica em fevereiro de 2010 e o Clube do Crítico em junho de 2020.
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